A sinopse da história é a seguinte: os mosquitos transgênicos (Aedes
aegypti, transmissores do vírus da dengue e de outras enfermidades)
carregam um gene de letalidade condicional, isto é, morrem se não puderem beber
água com uma quantidade importante de tetraciclina. O antibiótico é fornecido a
eles na “biofábrica”, mas não está disponível na Natureza, uma vez que este
antibiótico é artificial. No processo de produção dos insetos, as pupas de
machos podem ser separadas das fêmeas e só machos serão depois liberados, nas
campanhas de controle. Os machos cruzam com as fêmeas na área de liberação,
morrem depois de alguns dias e toda a sua prole também morre, antes mesmo de
sua metamorfose para adultos alados. Isto leva a uma redução drástica da
população do mosquito e também impede o “escape” dos transgenes para a
população selvagem de Aedes
aegypti. Como só machos são liberados, os seres humanos não interagem
efetivamente com estes mosquitos transgênicos liberados.
Se tudo funcionar exatamente
como está descrito acima, quais os riscos?
Muito bem, o que queremos proteger no ambiente urbano onde vivem os A. aegypti e onde serão liberados os mosquitos
transgênicos? Os alvos de proteção são o ser humano e seus animais de criação e
companhia e alguns animais silvestres urbanos valorados (sabiás, por exemplo,
mas seguramente não ratos ou baratas). Não faz sentido dizer que queremos
preservar um ecossistema que pudesse ser destruído pela presença transitória do
mosquito transgênico, porque o impacto de uma população de mosquitos de tão
curta duração, por mais numerosa que seja, seguramente será nulo. Resta então
encontrar rotas cientificamente embasadas que pudesse levar a danos aos seres
humanos ou a animais urbanos diretamente causados pelos mosquitos transgênicos
nos seus poucos dias de vida pela cidade.
Ora, se o
mosquito transgênico (macho) nem sequer pica o homem ou qualquer outro animal,
não há rota ao dano possível exceto se ele for ingerido. Acontece que os
animais que comem insetos comem uma variedade deles e seria muito pouco
provável que ingerissem uma quantidade importante dos insetos liberados para
controlar a população de insetos, e não para engordar sapos. Mesmo assim,
podemos considerar que o primeiro passo de uma rota ao dano a animais
insetívoros pode existir, isto é, a ingestão mesma de alguns mosquitos ao longo
da semana de liberação controle.
Qual é o
próximo passo? Mostrar que os mosquitos são tóxicos para estes insetívoros. Mas
o que têm de novo estes mosquitos? Duas proteínas que estão fartamente
estudadas quanto à toxicidade, sabendo-se que é nula nas doses que os insetívoros
poderiam ingerir. Aqui acaba nossa rota ao dano, concluindo-se que não é
possível um dano. Mesmo assim, pode-se fazer experimentos com insetívoros (e
foram feitos!); conclusão: não houve danos. Logo, para o único objeto de
proteção que é real (seja ele um sapo, uma perereca,uma lagartixa, um morcego
ou outro insetívoro urbano, que tem uma valoração muito relativa pela
população...) não há danos. Então, o mosquito transgênico NÃO APRESENTA RISCOS
à saúde humana, animal ou ao ambiente diferente daqueles representados pelos
mosquitos não transgênicos.
E se nem
tudo funcionar “como manda o figurino”?
Poder-se-ia
argumentar: esta é a situação ideal; mas se nem todos os mosquitos morrerem? E
se fêmeas forem liberadas? E se os mosquitos cruzarem com outra espécie e o
transgene letal não funcionar nela?
Vamos agora
analisar cada uma destas hipóteses.
De fato, nem
todos os mosquitos morrem: até uns 5% sobrevivem, mesmo sem tetraciclina. O que
ocorre com eles? Vão procriar e talvez morrer de velhos (em 40 dias), mas vão
ter crias. Suponhamos que as crias também sobrevivam na taxa de 5%, e as crias
das crias também, e assim por diante. Esta população de insetos transgênicos
vai crescer e se perpetuar? De jeito nenhum! Os mosquitos selvagens estão se
reproduzindo na mesma área, com uma sobrevivência muito maior. A população dos
transgênicos será superada e desaparecerá rapidamente no local. É assim que
funciona a Natureza, desde que o Mundo é Mundo, isto é, desde que o primeiro
progenoto apareceu na casca da Terra.
E se houvesse mais tetraciclina no ambiente do que se imagina? Afinal, cada lugar tem sua particularidade... Deve-se lembrar que tetraciclina era um antibiótico usado em criação intensiva de animais. Estas criações são muito raras em áreas urbanas e, além disso:
a) o
descarte dos efluentes sem tratamento é incomum no caso deste tipo de
agroindústria.
b) o A. aegypti prefere águas mais limpas para a
oviposição. Se, por um enorme acaso, uma fêmea que cruzou com um macho
transgênico botasse seus ovos numa água com muita tetraciclina, é altamente
improvável que sua prole escolhesse o mesmo local para ovipor, pois a troca de
locais de postura é uma das características do A. aegypti.
c) Além
disso, neste mesmo local os mosquitos selvagens (“do mal”) também podem fazer
posturas... e competir com os transgênicos.
d) o mais
importante: desde
2009 a Instrução
Normativa SDA no. 26 (MAPA) proíbe o uso de tetraciclina como aditivo alimentar
para a criação do que quer que seja no país.!!! Assim, o antibiótico só será
usado para o tratamento de alguma infecção. Além disso, a droga é rapidamente
metabolizada e muito instável no ambiente.
Por isso, mesmo sem construir uma rota ao dano formal,
vê-se facilmente: a preocupação de que a tetraciclina ambiental pudesse manter
viva uma população de mosquitos transgênicas, mesmo pequena, é desprovida de
base científica.
Neste
pequeno período em que os mosquitos transgênicos que escapam da morte estiverem
voando na cidade, o que pode acontecer? Se forem comidos, o assunto já está
discutido e concluímos que não há dano. E se picarem pessoas? Procuremos formar uma rota ao dano para este caso. Como a picada do
mosquito pode fazer mal a uma pessoa ou a um animal (não considerando a
transmissão de alguma doença, porque neste caso não há diferença entre os
mosquitos transgênicos e os selvagens)? Pode provocar alergia. De fato, muita
gente é alérgica à saliva do mosquito. Então, a pergunta é? Seria a saliva do
mosquito (fêmea) transgênico mais alergênica que a do selvagem? Que dano
adviria desta nova composição da saliva?
O primeiro
passo da rota que leva da presença do mosquito fêmea transgênico ao dano (isto é, uma reação
alérgica) é real, embora com baixa probabilidade: alguém ser picado por ele. O
segundo passo é: a saliva tem alguma proteína nova alergênica? As duas únicas
proteínas novas foram avaliadas quanto ao seu potencial alergênico,
concluindo-se que não têm este potencial. Além disso, elas não parecem ser
expressas na glândula salivar. Portanto, a rota ao dano se interrompe no
segundo passo e não haverá dano algum, além daquele observado no caso das
picadas de mosquitos selvagens.
Resta saber
o que aconteceria se o transgene passasse para uma espécie sexualmente
compatível. Acontece que esta espécie não existe: mesmo o A. albopictus, um mosquito de
hábitos semi-silvestres, que divide áreas de transição silvestre/ rural
(ecótonos) com o A.aegypti,
não cruza com ele. Então, esta hipótese é nula.
Mas ainda
que o transgene passasse ao A.
albopictus, este seria morto pela expressão da proteína letal. E ainda que
isso não acontecesse, qual seria o problema da população de mosquitos levar os
transgenes, uma vez que sua expressão em proteínas não é danosa ao homem nem
aos animais? Aliás, a mesma pergunta poderia ser feita para o escape de
qualquer transgene cuja expressão não leva a danos: não é presença do transgene que é um dano, mas sua expressão, quando trouxer
algum impacto ao ambiente ou à
saúde.
Por fim, o
que aconteceria se uma fêmea do mosquito do bem picasse uma pessoa numa área
endêmica ou epidêmica para dengue? Mesmo que as fêmeas piquem uma pessoa com vírus circulante, elas
vão morrer muito antes do vírus poder fazer seu ciclo, escapando do trato
digestivo, ganhando a hemolinfa e voltando à glândula salivar. Isso toma pelo
menos duas semanas e as fêmeas morrem em menos de 10 dias! Portanto, não há
risco de aumento da transmissão.
De fato, no
entendimento da CTNBio, como agência de risco, a introdução pelo homem de
alterações genéticas – velha como a agricultura – não é um risco em si mesmo:
sua expressão é que pode representar risco. Não havendo risco na expressão dos
novos genes, a presença deles em si NÃO é danosa.
Assim, em menos
de 6000 palavras (ou duas páginas ofício em espaço 1), fomos capazes de
demonstrar que não há riscos
reais para os objetos de proteção. Foi, na verdade, muito fácil, porque os
insetos não sobrevivem numa taxa que pudesse garantir sua perpetuação: é evidente
que os riscos sempre tendem a crescer se os agentes de risco (neste caso, os
mosquitos GM) estiverem presentes por longo tempo em grande número numa grande
área, o que definitivamente não é o caso aqui.
Réplica ao parecer dado por pedido de vistas, lido na
reunião plenária da CTNBio no dia 10 de abril de 2014
Ao final da
reunião da Plenária da CTNBio de abril de 2014 foi aprovada
a liberação comercial da
variedade OX513a do Aedes
aegypti, produzido epla empresa britânica Oxitec.
Logo antes
da votação pela CTNBio da liberação comercial do mosquito transgênico um dos
seus membros pediu vistas ao processo. Dificilmente se poderia deixar de ficar
impressionado com a quantidade de informações distorcidas e argumentos sem base
na ciência que foram por ele então trazidos à CTNBio.
Não
interessam ao público e talvez nem mesmo aos membros da CTNBio as questões
processuais, uma vez que elas são sempre detalhes menos importantes da questão
principal. Quem quiser se aprofundar no rito e outras questões normativas deve
ler a postagem sobre aaudiência pública em Piracicaba, um ano após a liberação
comercial pela CTNBio. Na audiência o Dr. Kageyama levantou pela n-ésima vez
esta bola - http://genpeace.blogspot.com.br/2015/03/audiencia-publica-em-piracicaba-para.html
Afinal, qual será sempre a questão principal na CTNBio? Resposta: Há riscos na liberação destes mosquitos ou não? Se há, quais são?
Foi por isso
que me fixei nesta questão, que é o hardcore da avaliação de risco, e expliquei o
passoa passo e as conclusões da CTNBio acima.
De volta ao
parecer de vistas apresentados pelos Dr. Andriolli e Melgarejo, vale perguntar:
que questões de risco foram tratadas? Essencialmente apenas uma: a
sobrevivência de uma parcela dos insetos liberados e de sua prole. Como vimos
acima, isso não representa risco algum.
E em que
mais se estendeu o parecer? Pasmem, a maior parte da explanação foi para
mostrar ao público presente (membros e assessores da CTNBio, representantes de
empresas e ONGs e curiosos) que a eliminação do A. aegypti poderia trazer problemas muito maiores
ao país do que sua presença! Mas como??? De onde saiu o longo texto lido
na planária da CTNBio, carregado de tanta tolice? De um hospício?
Pois é:
Segundo o argumento dos relatores, se eliminarmos o A.
aegypti abriremos espaço para
outros vetores da mesma doença (o A.
albopictus, que está espalhado na periferia das cidades e em áreas com mais
cobertura vegetal, é o candidato a tomar conta da casa vazia) ou ainda trocar a
dengue por coisa pior, como a chikungunya). Então,
queridos 3 ou 4 leitores que me acompanham, o nosso pesquisador propôs que não
se elimine o mosquito, deixando de combater o certo por medo de uma ameaça
duvidosa.
Será que
isso tem fundamento? Quando o Triatoma
infestans, vetor da doença de Chagas, foi erradicado do Brasil, o espaço
deixado vago nas casas NUNCA foi ocupado por qualquer uma das mais de 100
espécies de barbeiros que vadeiam pela Pindorama. Quando nossos corpinhos
ficaram livres do vírus da varíola, nem por isso outros vírus, piores ou
melhores, tomaram-lhe o espaço vago.
É uma
tremenda bobagem imaginar que o A.
albopictus, que prefere se reproduzir em ocos de árvores e outros ambientes
silvestres, vá agora ovipor nas nossas latas velhas, caixas d´água e outros
ambientes propícios ao A.
aegypti. A espécie está aqui desde 1986 e nunca invadiu os habitats do A. aegypti mesmo onde as densidades dele eram
baixas. A situação é exatamente igual à do Triaoma
infestans, que era altamente domiciliado: o ambiente deixado livre nunca
pode ser preenchido pelos outros barbeiros porque eles não têm hábito de morar
com o homem.
Independentemente
da possibilidade desta troca de guarda de mosquitos ser real ou não, é
completamente absurdo dizer que não devemos eliminar o A. aegypti, um seríssimo
problema de saúde pública, por causa de uma hipótese pouco provável e cujas
consequências são por demais discutíveis.
É exatamente o caso de um caçador que hesita em atirar num leão que o
ameaça numa trilha na floresta porque, atrás dele, pode vir um rinoceronte
furioso, contra o qual ele não tem balas que prestem. A presença do leão
é real, mas do rinoceronte só se conhecem histórias. O que você faria no lugar
do precavido caçador?
Só pode
dizer uma coisa destas quem
não tem compreensão da avaliação de riscos e despreza seus cidadãos, colocando
seu ideário à frente das questões de seu povo. Não causa espanto também saber
que uma parte dos que se opõem a esta tecnologia mora na Europa ou vive em
outras áreas frias do globo, onde a dengue não existe ou causa poucos
problemas. Começo a gostar do
aquecimento global!