sábado, 24 de agosto de 2013

Genes inteiros podem passar do alimento para o sangue humano - Complete Genes May Pass from Food to Human Blood - E o que isso tem a ver com os transgênicos?

Que DNA circula no sangue não é novidade. Fragmentos de diferentes tamanhos podem ser encontrados, alguns grandes suficientes para terem genes inteiros (na hipótese que sejam genes com introns pequenos) (Jahr et al, 2001; Stroun et al., 1987).  Entretanto, a maior parte do DNA circulante é originado do próprio organismo: Os fragmentos de DNA livres de células circulando no plasma são em geral uma amostra bastante uniforme do genoma completo.

O entendimento atual é que as células que sofrem apoptose – e que estão presentes em qualquer indivíduo, sadio ou doente, são a fonte principal do DNA livre de células (cfDNA, em inglês). Além disso, no caso de diferentes doenças (inflamação, doenças autoimunes, câncer ou trauma) as células necróticas podem aumentar o nível do DNA circulante (Jahr et al., 2001).

No caso de mulheres grávidas, DNA fetal também circula e pode ser detectado para fins diagnósticos (Buysse  et al., 2013). O DNA livre de células circulante é agora também encarado como um promissor marcador molecular em estudos sobre a fisiologia do exercício (Breitbach et al., 2012).

Também já se sabia desde muito tempo atrás que certas patologias aumentam a quantidade de DNA circulante (Leon et al., 1977). Este aumento não é causado pelo DNA, evidentemente; é exatamente ao contrário: certas patologias aumentam a permeabilidade de vasos ou alteram outras condições de tráfego de moléculas através de membranas e levam a um aumento não apenas de cfDNA, mas de muitas outras macromoléculas.

A origem dos DNAs exógenos (isto é, que não proveem do organismo) é que não tinha sido suficientemente esclarecida, embora possa ter origem em patógenos (Vernon et al, 2002). Na verdade, ele pode vir de diferentes fontes, não necessariamente dos alimentos ingeridos.


Dados sobre DNA circulante

A concentração de DNA livre de células no plasma de indivíduos saudáveis varia entre 0 e 100 ng/ml, com uma média de 13 +/- 3 ng/ml. Este nível pode aumentar uma ordem de grandeza em vários tipo de câncer para uma média de 180 +/- 38 ng/ml (Leon et al., 1977). O aumento da concentração de DNA em pacientes com certos tumores pode ser devido à redução da atividade das DNAses celulares (Cherepanova et al., 2008), que não é a causada pelo aumento da concentração de DNA, mas a causa deste!

A novidade que nos traz este interessante e criativo artigo, de julho de 2013 (Spisák et al., PLOS ONE 8(7), acessado através do link   
é a descoberta de DNA circulante (livre de células) no plasma que parece ter origem em plantas e outras espécies ingeridas na alimentação normal. Como veremos, contudo, a conclusão pode ser um tanto apressada, embora possa ser em parte verdadeira.

A metodologia adotada no artigo foi bastante criativa, mas traz consigo algumas limitações e consequências. A primeira é que não é possível estimar a porcentagem ou fração que os DNAs de origem não humana representam no total de DNA livre circulante no plasma. Não há dúvida que há DNA de várias origens no plasma, mas é provável que representem uma fração muito pequeno do total do DNA circulante.

A segunda limitação é sobre a inferência do tamanho dos genes circulantes. O sequenciamento per se não permite nenhuma inferência. Os autores se basearam numa separação de fragmentos por tamanho, através de eletroforese, e daí inferem que muitos fragmentos teriam tamanho grande. Isso, contudo, não pode ser derivado dos resultados porque na eletroforese de DNA fragmentos pequenos sempre são transportados entre os grandes, sendo esta separação útil para muitos fins, mas inadequada para a conclusão a que os autores chegam. Assim, não é possível concluir que fragmentos suficientemente grandes para conter um gene inteiro passem para o plasma, uma vez que fatalmente pequenos fragmentos contaminantes da amostra também estarão presentes no sequenciamento.

Quando os autores afirma que muitas sequências representam DNA de cloroplasto, eles também admitem que em ao menos alguns casos elas poderiam advir de DNA bacteriano circulante. Outros autores já haviam demonstrado que DNA bacteriano circula normalmente no plasma humano. Fica, portanto, impossível assegurar que fração das sequências é de origem vegetal.

Há também algum conflito interno de resultados quando diferentes amostras são analisadas. Assim, em indivíduos saudáveis os fragmentos encontrados pareciam advir de cloroplasto de Solanum tuberosum (batata) e/ou Solanum lycopersicum (tomate), enquanto nos pacientes com doença de Kawasaki as sequências pareciam advir de Brassica rapa (canola) e laranja. Ora, considerando que não há um viés significativo da dieta dos pacientes com a doença de Kawasaki em direção ao consumo de laranja ou canola, os resultados sugerem que há, na verdade, uma identificação parcialmente errônea das sequências, que poderiam ter origem bacteriana ou, ainda mais grave, que o processo de purificação do DNA, separação por faixa de tamanho de fragmentos e sequenciamento foi bastante diferente nos dois casos, não permitindo qualquer comparação entre os conjuntos de sequências encontradas. Os autores também investigaram dados de sequências de DNA obtidas de plasma e depositados em bancos de dados públicos e chegaram à conclusão de que, num deles, era a soja que contribuía maciçamente para as sequências.  Estas variações evidentemente não refletem uma predisposição alimentar, mas um viés metodológico que não pode ser facilmente identificado na descrição da metodologia do artigo. Por isso, qualquer tentativa de provar que as sequências proveem da dieta através de um tratamento estatístico é, necessariamente, muito especulativa para ser aceita como uma demonstração definitiva.

Uma prova da afirmação anterior está na Tabela 1 do trabalho, que mostra os organismos cujas sequências de cloroplastos foram mais representadas nas amostras de soro de indivíduos normais. Vários, de fato, podem fazer parte da dieta normal, mas outros aparecem como surpresas, como Oltmannsiellopsis viridis, Scenedesmus obliquus, Zygnema circumcarinatum, Pseudendoclonium akinetum, Ostreococcus tauri e Mesostigma viride, todas algas verdes que não fazem parte da dieta humana, exceto como contaminante.  Há muitas outras surpresas equivalentes, representadas por outras algas e por organismos nunca consumidos numa dieta humana normal, como o criptomonadíneo Guillardia theta ou a árvore empregada para produção de madeira, Populus trichocarpa. A tabela mostra, enfim, que não se pode inferir com segurança o que pode provir da dieta e o que é, tão somente, sequência de DNA bacteriano circulante, que foi erroneamente identificado como de outro organismo (eucarioto).

Uma vez constatadas estas inconsistências (as quais os autores sequer mencionam), somos forçados a perguntar porque os autores empregaram bancos de sequências de cloroplastos, em lugar se sequências genômicas das plantas. Ora, um bom número de genomas das plantas comestíveis está disponível e não seria impossível blastar as sequências obtidas contra estes genomas, embora o esforço computacional seja, evidentemente, muito maior. O uso das sequências de genomas de cloroplastos pode ter sido uma opção válida para reduzir ou mesmo viabilizar o trabalho de blastar as sequências, mas seguramente levou às muitas inconsistências e prováveis erros de identificação observados aqui.

Em conclusão, é provável que haja algum DNA circulante de origem vegetal em indivíduos normais, assim como de muitas outras origens. Mas a inferência sobre o tamanho destes fragmentos é muito especulativa. Além disso, devido ao uso dos genomas de cloroplastos como referência para identificação das sequências, os resultados são muito surpreendentes e de forma alguma permitem concluir que o que se mediu e identificou tenha, de fato, origem nas plantas comestíveis listadas na Tabela 1.

Do ponto de vista de avaliação de risco este trabalho aponta para a probabilidade de que algum DNA recombinante circule no plasma humano, proveniente da ingestão do alimento formulado com plantas transgênicas. Muito bem, e daí? 

Um DNA de forma alguma pode entrar numa célula e servir de mensageiro para a transcrição e posterior tradução da proteína recombinante: não há mecanismos para transportar DNAs dupla fita para o interior de células eucariotas, nem para o citoplasma e muito menos para o núcleo. Ainda que, numa hipótese extremamente fantasiosa, o DNA pudesse chegar ao núcleo, não há mecanismo possível para sua transcrição em mRNA, poliadenilação, capping e exportação de volta ao núcleo, uma vez que o genes das plantas têm sinais totalmente diversos dos humanos para estes processos. A hipótese de que estes DNAs poderiam se inserir nos genomas é ainda mais fantasiosa, devido à ausência de mecanismos que permitam o transporte do DNA ao núcleo. Além disso, como prova de evidência, há milhares de genomas humanos  disponíveis e nem uma única sequência de planta neles que pudesse ter sido adicionada por este mecanismo hipotético.

Assim, o trabalho nos traz uma informação cientificamente interessante, mas inteiramente irrelevante do ponto de vista de risco.


Epílogo: May or Can?


Enquanto redigíamos esta análise a turma do GMWatch, sempre atenta a qualquer novo artigo que possa lançar dúvidas quanto ao conhecimento ou atitude dos avaliadores de risco de transgênicos, já se adiantou e postou comentários (http://www.gmwatch.org/index.php/news/archive/2013/15007-complete-genes-can-pass-from-food-to-human-blood-study) desvirtuando o que disseram Spisák e seus co-autores. O artigo claramente diz que genes inteiros podem (em inglês, may) chegar ao sangue vindo das tripas. Significa dizer que potencialmente eles podem fazer isso, mas não há certeza de que o façam. O nosso querido GMWatch trocou o may por can. Em português a tradução não muda, mas em inglês a troca implica que os genes podem, sem sobra de dúvida, passar das tripas ao sangue! Além disso, O GMWatch juntou aos comentários sobre o artigo um conjunto de comentários sobre artigos paralelos, dando a falsa impressão que Spisák e seus colegas acreditam em novos riscos dos OGM por causa desta "nova" informação. É distorcendo a ciência e os textos publicados que esta turma vai enganando os leitores.


Referências para leitura:

Breitbach S, Tug S, Simon P. (2012) Circulating cell-free DNA: an up-coming molecular marker in exercise physiology. Sports Med. 42(7):565-86.

Buysse K, Beulen L, Gomes I, Gilissen C, Keesmaat C, Janssen IM, Derks-Willemen JJ, de Ligt J, Feenstra I, Bekker MN, van Vugt JM, van Kessel AG, Vissers LE, Faas BH (2013). Reliable noninvasive prenatal testing by massively parallel sequencing of circulating cell-free DNA from maternal plasma processed up to 24h after venipuncture. Clin Biochem. Aug 8. pii: S0009-9120(13)00353-6. doi: 10.1016/j.clinbiochem.2013.07.020. [Epub ahead of print]

Cherepanova AV, Tamkovich SN, Bryzgunova OE, Vlassov VV, Laktionov PP (2008) Deoxyribonuclease activity and circulating DNA concentration in blood plasma of patients with prostate tumors. Ann N Y Acad Sci 1137: 218–221.

Jahr S, Hentze H, Englisch S, Hardt D, Fackelmayer FO, et al. (2001) DNA fragments in the blood plasma of cancer patients: quantitations and evidence for their origin from apoptotic and necrotic cells. Cancer Res 61: 1659–1665.

Leon SA, Shapiro B, Sklaroff DM, Yaros MJ (1977) Free DNA in the serum of cancer patients and the effect of therapy. Cancer Res 37: 646–650.

Stroun M, Anker P, Lyautey J, Lederrey C, Maurice PA (1987) Isolation and characterization of DNA from the plasma of cancer patients. Eur J Cancer Clin Oncol 23: 707–712.

Vernon SD, Shukla SK, Conradt J, Unger ER, Reeves WC (2002). Analysis of 16S rRNA gene sequences and circulating cell-free DNA from plasma of chronic fatigue syndrome and non-fatigued subjects. BMC Microbiol.


terça-feira, 20 de agosto de 2013

Um controle de pragas mais inteligente

Car@os visitantes do blog.

O controle de pragas não é, em si, um ponto principal da avaliação de risco de
OGMs, mas é recorrentemente tratado como ponto nevrálgico de um produto novo. Claro deve estar na cabeça de todos que este assunto afeta a tecnologia, não o produto, e que é regulado por outros Ministérios (Ministério da Agricultura e Pecuária, Ministério da Saúde) que não o MCTI, onde se insere a CTNBio.

Ainda assim, dada a relevância e a abrangência do tema numa abordagem mais “holística”, e considerando a qualidade dos artigos publicados, julgamos que é importante a divulgação da recente edição especial da Science (16 de agosto de 2013), onde constam muitos artigos que remetem o leitor a um cenário de praguicidas e de estratégias de controle de pragas muito bem embasado, sem o folclore que circula na internet.

A edição especial inclui notícias e revisão que vçao do sistema imune de plantas à prevenção de suicídios, passando por mais de uma dezena de temas relevantes, inclusive o uso de interferência de RNA para controle de pragas.

O link está abaixo, assim como o link direto para a o índice ativo de conteúdo. Boa leitura!

Obs: a íntegra dos textos só pode ser acessada via CAPES ou pelos acessoas privilegiados das universidades e centros de pesquisa.





terça-feira, 6 de agosto de 2013

Basics on small RNAs: transgenic beans, papayas, tomatoes, etc.

How dsRNA are loaded into Argonaut, the major player of human and plant RNAi? This key step is key to the discussion on how improbable would the load of external, gut-derived dsRNA into Argonaut be.

Therefore, for the sake of a fruitful discussion on this subject at Brazilian CTNBio and other distinguished risk assessment commissions, I strongly suggest the careful reading of the paper below.

Small RNA sorting: matchmaking for Argonautes
Benjamin Czech & Gregory J. Hannon
Nat. Rev. Genet. 12(1): 19-31 (2011)


segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Biossegurança de plantas transgênicas expressando RNAs de interferência: riscos remotíssimos, como previamente anunciado por este blog.

Saiu recentemente na revista GM Crops and Food: Biotechnology in Agriculture and the Food Chain vol 4, no. 2,pgs  90-97 (2013) um interessante artigo intitulado “Computational sequence analysis of predicted long dsRNA transcriptomes of major crops reveals sequence complementarity with human genes”( http://dx.doi.org/10.4161/gmcr.25285) . Os autores (Jensen et al.), todos da Monsanto em St. Louis, USA, mostram que existem mais de 8 milhões de dsRNA potenciais em soja, arroz, milho, alface e tomate e que destes mais de 30.000 têm completa similaridade com uma sequência de pelo menos 21 nt de algum gene humano comprovadamente transcrito (isto é, um gene “em uso” por nós).

Que coisa extraordinária: estaria a Monsanto publicamente admitindo que as plantas são um perigo para a saúde humana e que os vegetarianos estão condenados a ter os mais estranhos distúrbios metabólicos?

Ora, se houvesse uma possibilidade, ainda que reduzida, de que estes RNAs pudessem interferir de forma perigosa com o metabolismo humano por via digestiva, isso seguramente já teria sido visto. E mais: se as plantas tem este enorme conjunto de RNAs potencialmente interferentes, os animais têm seguramente muito mais! Assim, o consumo de carne de gado, pescado, frango, porco ou qualquer outro vertebrado seria um imenso risco alimentar. Mas, outra vez, nada disso se concretizou em dano.
Por isso, os dsRNA produzidos pelas plantas transgênicas não representam qualquer risco à espécie humana, se consumidos na alimentação, reduzindo todo este temor a mais um medo irracional e sem base na ciência e na observação.

Postagens anteriores sobre este tema:

Bases da interferência de RNA:  http://www.ufpe.br/biolmol/iRNA.htm