domingo, 8 de março de 2015

Agrotóxicos: tamanho real do problema e não-relação com os transgênicos

_________________________________________________

Revi este texto logo após a invasão da CTNBio pelo MST. Na ocasião os manifestantes repetiram inúmeras vezes que os transgênicos eram os culpados pelo aumento dos agrotóxicos e que os agrotóxicos estavam envenenando os trabalhadores e nossa comida. Ora, o texto abaixo, escrito em 2012, revia justamente a questão dos agrotóxicos e dos casos de intoxicação, com base nos dados do Sinitox (Fiocruz) e não apenas com base no que se escuta por aí. O resultado é surpreendente: os agrotóxicos têm um impacto muito pequeno na saúde do trabalhador e muito menor ainda, na do consumidor. Aliás, era de se esperar, uma vez que há um controle relativamente rígido no emprego destes produtos e que os mais empregados são relativamente seguros. Assim, a maioria esmagadora dos casos de intoxicação provém de erros no uso (acidentes individuais) e tentativas de suicídio (estas são 30 % dos casos notificados). Um número ínfimo (em geral rondando 10 casos por ano) é de intoxicação alimentar. Ainda assim, muito provavelmente por produtos que não envolvem transgênicos, uma vez que a maior parte dos alimentos encontrados com resíduos de agrotóxicos provem da pequena agricultura familiar. A releitura do texto, no rescaldo das invasões do MST, é importante demais.
________________________________________________________


Recentemente o Valor Econômico (23/02/2012) publicou texto de José Agenor Alves da Silva, diretor da ANVISA, sobre o trabalho daquela agência no rastreamento de resíduos de agrotóxicos em alimentos e as dificuldades que a agência tem enfrentado na aceitação de seus resultados, tendo sido desafiada em sua credibilidade por alguns setores da sociedade (http://www.valor.com.br/opiniao/2538528/agrotoxico-pimentao-e-suco-de-laranja). Não podemos aqui discutir esta questão, que ultrapassa em muito os objetivos deste fórum, mas queremos ressaltar que a incidência de intoxicações alimentares devidas a agrotóxicos no Brasil está grosseiramente exagerada pela mídia e por alguns órgãos de governo. Isso tem também relação direta com as plantas transgênicas, falsamente acusadas de ser fonte de intoxicação por agrotóxicos, o que é uma tremenda inverdade, como se verá mais abaixo.
Se é certo que o Brasil consume uma imensa quantidade de agrotóxicos, é certo também que exporta um volume enorme de produtos agrícolas para todas as partes do mundo, com raríssimos casos de problemas relacionados a resíduos de agrotóxicos. A razão disso é que o grande produtor tem um controle rígido do uso de agrotóxicos, que não apenas representam para ele custos, mas são uma fonte de problemas pós-colheita caso resíduos acima do permitido permaneçam no produto. Isso é válido tanto para produtos de exportação como para o mercado interno, que é fiscalizado, inclusive pela ANVISA. O resultado é que os alimentos industrializados de origem vegetal raramente contem resíduos de agrotóxicos acima do permitido.
Poder-se-ia argumentar que o ideal é resíduo zero. Ora, a própria natureza se encarrega de produzir um sem número de diferentes toxinas, muitas delas análogas aos agrotóxicos, que estão em nossos alimentos sempre. Além disso, como é sabido desde Paracelso, faz quatro séculos, a dose é o que importa. Pode haver, em alguns casos, uma bioacumulação no consumidor final, mas isso só ocorre com alguns agrotóxicos que são, por isso mesmo, muito controlados. O uso bem feito dos agrotóxicos tem permitido ao Brasil ganhar um enorme espaço na exportação de grãos, ao mesmo tempo oferecendo aos brasileiros alimentos de qualidade por preço altamente competitivo.
Assim, é pouco provável que o grosso dos alimentos consumidos pelos brasileiros chegue ao mercado contaminado. Além disso, ao contrário do que afirma o diretor da ANVISA, a linha que separa os efeitos benéficos de eliminar uma praga e os efeitos maléficos, que podem levar um ser humano à morte, não tem nada de tênue. Os mecanismos de ação podem ser muito diferentes e, sobretudo, a dose de agrotóxico que chega a ser ingerida num alimento é muitas ordens de grandeza inferior àquelas observadas na lavoura. Com estas informações em mente, podemos analisar os dados que o país dispõe sobre intoxicação com agrotóxicos e sobre a parcela destes casos que é devida à ingestão de alimentos contaminados com agrotóxicos agrícolas.
O acesso online ao SINAN permite gerar várias tabelas, entre elas esta, para 2006, Não há registro no banco de anos posteriores, embora haja um relato em pdf que está discutido mais abaixo.


Uma breve análise mostra que, dos pouco mais de 3000 casos registrados em 2006, 33% foram tentativas de suicídio, a maior causa percentual de intoxicação com agrotóxicos. Em seguida, outros 30% são devidos a acidentes de trabalho, totalizando quase 1000 casos. Há 15% de casos sem identificação de circunstância. Outros 15% são devidos à acidentes.O que salta à vista é que apenas 43 casos foram atribuídos à contaminação de alimentos, embora não esteja discriminada a origem deles (se diretamente da lavoura ou de revenda, se de pequeno proprietário ou agroindústria, nem o tipo de alimento).
Assim, o número absoluto de casos é muito reduzido e as causas da contaminação alimentar são difíceis de avaliar. No total de casos, elas representam apenas 1,2% dos casos notificados. Uma análise da distribuição geográfica mostra que os casos estão espalhados por alguns estados, sem correlação óbvia com o plantio de transgênicos.
Apesar de suas deficiências conhecidas (subnotificação, viés do notificador, etc,), o SINAN é confiável e abrange todo o país. Uma estimativa precisa dos casos de intoxicação alimentar por agrotóxicos está fora dos objetivos deste artigo. O que se que ressaltar aqui é a pequena relevância  percentual dos casos de intoxicação alimentar por agrotóxicos (em torno de 1%) quando comparada às causas maiores (acidentes, ocupação, suicídio, etc.). Deve-se lembrar aqui que o SINITOX registra quase 10 vezes mais casos de intoxicação por alimentos devidos ao próprio estado de conservação dos alimentos do que por contaminação por resíduos de agrotóxicos.

Em um documento da SVS-MS (http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/af_III_informe_agrotoxicos_09.pdf), as mesmas informações acima podem ser apreciadas para 2008. O cenário não muda significativamente (os casos que interessam aqui são da coluna C9):



Para 2007, o SINITOX registra apenas 12 casos de intoxicação alimentar por agrotóxicos para todo o país. Ainda que o total anual de casos no Brasil de intoxicação alimentar por agrotóxicos totalizasse 100, suas causas podem ser as mais diversas, assim como a origem destes produtos. Não há dúvida que a intoxicação de trabalhadores e por acidentes é um sério problema, assim como o uso destes produtos em tentativas de suicídio, mas não há qualquer base para se atribuir aos transgênicos a pecha de levar à boca do consumidor os agrotóxicos usados na lavoura. Até porque dos alimentos onde se detecta ocasionalmente níveis de pesticidas acima do permitido por lei não faz parte nem milho nem soja, as únicas plantas transgênicas consumidas como alimento no Brasil (do algodão, terceira planta transgênica, só se consome o óleo, que é um produto purificado e não contem pesticidas nem proteínas recombinantes expressas pela planta geneticamente modificada). De fato, a ANVISA monitorou  dezoito  alimentos: abacaxi, alface,  arroz, batata, beterraba, cebola, cenoura, couve, feijão, laranja, maçã, mamão, manga, morango, pepino, pimentão, repolho e tomate. A escolha das culturas baseou-se nos dados de consumo obtidos pelo  Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na disponibilidade destes alimentos nos supermercados das diferentes  unidades da Federação e no uso intensivo de agrotóxicos nestas culturas. De acordo com a própria ANVISA, no texto produzido pelo programa PARA, análise dos dados do Censo Agropecuário  do IBGE de 2006 mostra alguns fatores  que  potencializam o risco de uso inadequado dos  agrotóxicos e  a contaminação dos alimentos:
• 785 mil estabelecimentos (56,3% daqueles onde houve utilização de agrotóxicos) não receberam orientação  agronômica.  Das propriedades que receberam assistência (172 mil), 76,7% usam agrotóxicos.
• Quase 85% da mão de obra agrícola se encontram nas pequenas  propriedades, e mais de 80% dos  proprietários rurais  e 37,5% dos trabalhadores com laços de parentesco com  eles é analfabeta ou sabe ler e escrever, mas não tem escolarização formal ou apenas o ensino fundamental incompleto.
Isso é especialmente válido para os produtores dos itens agrícolas que foram avaliados pelo PARA, mas não se aplica de uma forma geral aos produtores de plantas transgênicas, que tem um domínio técnico muito mais elevado. Não se está aqui afirmando que o problema da contaminação dos alimentos com agrotóxicos está restrito à pequena agricultura e à agricultura familiar, mas que ele é certamente de muito menor proporção na agroindústria. Efetivamente, não há qualquer dado que indique contaminação de agrotóxicos em soja e milho, nem razão técnica para isso, e muito menos no caso destes cultivos, quando transgênicos.

Concluímos que, na questão de intoxicação alimentar por agrotóxicos, há muito barulho por pouco. E, especificamente para a participação das plantas transgênicas nisso, há certamente muito barulho por nada. A quem interessa manter esta mentira rolando na mídia?

Atualização

A consulta ao Sinitox para 2012 (dado mais recente) não muda o cenário descrito com base no relatório anterior (1998-2007). Observemos as tabelas:


Tabela das intoxicações em 2012 (Sinitox, apenas as 3 primeiras entradas)

Agente
Vítima humana
Vítima animal
Informação
Total
% do total de intoxicações no país em 2012
Medicamentos
24029
132
627
24788
27,62
Agrotóxicos/Uso Agrícola
3937
76
98
4111
4,58
Agrotóxicos/Uso Doméstico
1843
144
118
2105
2,35

A tabela 10 (http://www.fiocruz.br/sinitox/media/tabela%2010_2012.pdf) mostra que houve cerca de 100 óbitos e 22 sequelas associadas aos agrotóxicos. Não são poucos óbitos. mas que circunstâncias estavam envolvidas nestes casos? É extremamente instrutiva a inspeção da Tabela 6 (http://www.fiocruz.br/sinitox/media/tabela%206_2012.pdf) :  dos  quase 3000 casos de intoxicação, apenas 7 foram por ingestão de alimentos. Ainda assim, não se sabe em que condições exatas. A maioria esmagadora foi a soma de casos individuais e tentativas de suicídio. Estas últimas são justamente as circunstâncias que levam à maior parte dos casos com  sequelas ou de morte.

Além disso, e não menos importante, já no início da década de 90 os casos de intoxicação aguda com agrotóxicos de uso agrícola chegavam a mais de 3.000 por ano (http://www.fiocruz.br/sinitox_novo/media/artigo1.pdf), número quase igual ao de hoje (consulte http://www.fiocruz.br/sinitox/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=8 para os vários anos). Isso parece surpreendente, sobretudo tendo em vista o enorme aumento no uso de agrotóxicos no campo, sobretudo nos últimos 5 anos. Por que o número de casos não explodiu? A explicação é simples e cristalina, mas choca o público e vou deixar ao leitor a tarefa de encontrá-la.

Conclusão de março de 2015

As palavras de ordem do MST sobre os danos dos agrotóxicos à nossa comida carecem de base nos dados levantados pelas autoridades do país. É certo que deve haver uma certa sub-notificação e que casos de intoxicação crônica por ingestão de alimentos contaminados podem existir (http://www.scielo.br/pdf/csc/v12n1/04.pdf), mas provavelmente são poucos ou fatalmente já teriam  surgido e empurrado o país a tomar as medidas cabíveis. Afinal, os médicos estão alertas e há procedimentos específicos para a avaliação de intoxicações crônicas por agrotóxicos, cujos sinais e sintomas são bem conhecidos (ver caixa abaixo)

INTOXICAÇÃO POR AGROTÓXICO A intoxicação crônica caracteriza-se pelo surgimento tardio, após meses ou anos, por exposição pequena ou moderada a produtos tóxicos ou a múltiplos produtos, acarretando danos muitas vezes irreversíveis nos indivíduos expostos. Segundo o Protocolo de Atenção à Saúde dos Trabalhadores Expostos a Agrotóxicos, elaborado pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2006), as patologias relacionados à intoxicação crônica por agrotóxicos podem ser neoplasias, como mieloma múltiplo e leucemias; anemia aplástica; transtornos mentais, como alterações cognitivas e episódios depressivos; doenças do sistema nervoso como distúrbios do movimento, polineuropatias e encefalopatia tóxica; oculares, como neurite óptica e distúrbios da visão e ainda auditivas, circulatórias, respiratórias, digestivas e dermatológicas.

Então, só posso reforçar o que disse antes, faz quase três anos: a espalhafatosa ligação entre os transgênicos e as intoxicações com agrotóxicos, sobretudo nos alimentos, é pura e simples mentira. Que continua sendo repetida, com enorme sucesso, por várias organizações sociais e pela internet, para imenso prejuízo do entendimento do problema.

Leituras recomendadas:

Resultados de campo sobre uso de agrotóxicos por pequenos produtores: muito elucidativo: http://www.ecodebate.com.br/2012/02/23/pequenos-produtores-estao-cientes-de-riscos-dos-agrotoxicos/
Neice Müller Xavier Faria,  Anaclaudia Gastal Fassa e Luiz Augusto Facchini - Intoxicação por agrotóxicos no Brasil: os sistemas oficiais de informação e desafios para realização de estudos epidemiológicos. Ciência & Saúde Coletiva, 12(1):25-38, 2007 (http://www.scielo.br/pdf/csc/v12n1/04.pdf)


Leia também:

2 comentários:

  1. Curiosa esta abordagem. Se limita a dados baseados em fiscalização. Em que mundo vivemos? Fiscalização, aqui no Brasil? Fala sério: http://www.prdf.mpf.mp.br/imprensa/17-04-2014-mpf-df-reforca-pedido-para-que-glifosato-seja-banido-do-mercado-nacional e não é de hoje: http://www.mma.gov.br/port/conama/processos/5FDD59FA/ContribuicaoCTValdir.pdf e convém ver também a Tese de Doutorado
    da bióloga Eliane Dallegrave,

    ResponderExcluir
  2. Anônima, seu comentário me passou despercebido, mas agora (11/05 eu o vi e mando a resposta:

    Para seu conhecimento: a Fiocruz, à pedido da ANVISA, já reavaliou o glifosato. Imagina a conclusão a que chegou: não tem porque tirar do mercado (http://www.agrolink.com.br/noticias/avalia--231---227-o-da-fiocruz-n--227-o-recomendou-proibi--231---227-o-do-glifosato_217562.html) Quem entende deste assunto: A ANVISA e a FIOCRUZ ou o MPF? Sejamos razoáveis.

    Seu segundo link remete pro blog do Isidoro. Ele tem toda uma história de luta contra os desmandos nesta Terra Brazilis, e o respeito por isso, mas não é toxicologista nem avaliador de riscos e, o mais sério, tem um tremendo viés anti-biotecnologia. Você realmente acha que ele pode ter mais clareza neste assunto do que a Fiocruz ou a ANVISA?

    Baixei e li a tese da Eliane. Não sou toxicologista, então que a metodologia está correta e os resultados compatíveis com ela. Mas encontrei um problema que tem relação direta com meu trabalho, que é avaliação de riscos: a exposição. As doses empregadas por ela são altíssimas. No caso dos experimentos de teratogênese a menor foi 500 mg/kg de peso, diariamente, o que equivaleria a um home ingerir 35 gramas de glifosato (duas colheres de sopa) todo dia durante vários dias. Uma exposição assim só acontece se for proposital, como tentativa de suicídio. Nos demais experimentos a menor dose foi de 50 mg/kg, o que ainda está muito longe do que uma pessoa possa ser exposta, a menos que por acidente ou voluntariamente. Nos alimentos, por exemplo, as doses máximas são de 10 partes por milhão, o que é várias ordens de grandeza abaixo disso. Numa dose tão grande quanto ela usou nos experimentos teratogênicos uma enormidade de produtos que consumimos em mínimas quantidades teriam o mesmo efeito: cafeína, aspirina e um mundo de outras coisas. Afinal, como nos ensinou o velho Paracelso, a dose faz o veneno.

    Assim, para um avaliador de risco, suas três citações/alertas não mudam nada e continuo mantendo tudo que disse acima.

    Um último ponto: é possível que haja um número muito maior de intoxicações por agrotóxicos, que passa subnotificado. A OMS crê que está na proporção de 50:1. E é possível também que as intoxicações crônicas (derivadas de exposição laboral ou certas exposições ambientais) tenham um desfecho clínico ruim, ainda desconhecido. Mas esta segunda questão já vem sendo equacionada. À falta de outras fontes, portanto, só podemos seguir as que temos no Brasil, que não têm nada a ver com fiscalização, como você erradamente colocou. Sugiro que você aprenda lendo este link http://www.scielo.br/pdf/csc/v12n1/04.pdf

    ResponderExcluir