domingo, 14 de outubro de 2012

O estudo sobre o efeitos dos OGM em ratos não deveria ter sido publicado da forma como está escrito

Por Gérard Pascal no Jornal l’Express on line, seção Express Yourself - 10/10/2012  (tradução Arnaldo Paes de Andrade)

Houve um tempo, no início dos anos 1970, em que jovens pesquisadores, entre os quais eu me incluía, vindos do CNRS, do INRA, do INSERM e das universidades podiam calmamente analisar, no seio de um órgão do CNRS, as diferentes abordagens nacionais e internacionais da avaliação de riscos alimentares e refletir sobre possíveis melhorias. Isso tudo sob a égide de pesquisadores reconhecidos e experientes. Ao cabo de mais de dois anos de trabalho eles publicavam um número especial de uma revista científica repleta de propostas que eram subsequentemente debatidas no Conselho Superior de Saúde Pública da França (CSHPF) e postas então em vigor na legislação francesa. Um cientista oriundo das indústrias do setor era incluído nesses trabalhos por conta de sua área de atuação e de seu conhecimento das técnicas industriais. No seio do CSHPF também tinham assento pesquisadores indicados pelas indústrias e um pesquisador oriundo de uma organização de consumidores.

Siglas deste artigo
CNRS - Centro Nacional de Pesquisa
INRA - Instituto de Pesquisa Agronômica
INSERM – Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica
CSHPF - Conselho Superior de Saúde Pública da França
CGB – Comissão de Engenharia Biomolecular
ANSES – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
HCB – Conselho Superior de Biotecnologia
OMS – Organização Mundial da Saúde
FAO – Organização para Alimentação e Agricultura

Refeição tóxica

Mesmo se de quando em vez uma manchete de jornal viesse com um título tonitruante do tipo “Refeição Tóxica” ou “Estão nos envenenando”, enfeitado de uma caveira mais ou menos estilizada, a mídia não intervinha em nossos trabalhos antes de seu término e deles fazia seus relatos sem tomar partido. Circulava, entretanto, nesta época, um documento chamado “lista de Villejuif” apresentado como proveniente do hospital de Villejuif, especializado no diagnóstico e tratamento do câncer, no qual aparecia uma lista de aditivos alimentares perigosos ou mesmo cancerígenos, entre eles o ácido cítrico! Essa lista, sem fundamento científico, ainda hoje circula, a despeito dos desmentidos oficiais. Era o início da instilação, no espírito do consumidor, de um sentimento de insegurança ligado aos alimentos produzidos pela indústria que não fossem mais “naturais”.

Nota: Ver sobre a Lista de Villejuif em
e para uma imagem do documento apócrifo buscar num link existente em

Pouco a pouco a mídia foi-se fazendo presente em nossos debates; dois fatores aceleraram essa tendência de forma quase simultânea: a crise da vaca louca - um problema real de saúde pública, com riscos elevados – e o aparecimento dos OGMs, em meados dos anos 1990.


A França foi o primeiro a criar uma comissão especializada, em 1986, a Comissão de Engenharia Biomolecular (CGB), encarregada de avaliar os riscos de organismos geneticamente modificados para a saúde e para o meio ambiente, pois era evidente que alguns dentre eles seriam lançados futuramente no mercado. Foi apenas dez anos depois, especialmente em razão de uma política agressiva e inadequada das empresas de biotecnologia vegetal, que uma crise se desenvolveu, crise da qual nos vemos agora o paroxismo.


Tumores nos ratos

No último dia 19 de setembro (NT: de 2012) um artigo científico demonstrando que o milho transgênico NK603 provocava tumores, em especial nas ratas, foi apresentando a alguns veículos de imprensa, pouco numerosos, com grande espalhafato mediático. Pela primeira vez na França o restante da mídia foi mantido à distância, não tendo sido incluído na conferência privada de imprensa organizada na ocasião, nem tendo acesso ao conteúdo que foi posto sob sigilo logo após o fim da conferência de imprensa, impedindo-se assim que o restante da mídia pudesse consultar os melhores pesquisadores antes da mídia concorrente mediatizar a informação. Como o segredo não foi assim tão bem guardado, eu tive conhecimento deste evento mediático e das linhas gerais do artigo, mesmo não tendo podido consultá-lo. Posto que ele começou a circular um pouco antes do fim do sigilo, eu pude rapidamente formar uma opinião sobre a qualidade dos resultados.

Não é preciso uma longa análise, mas simplesmente experiência com toxicologia alimentar e com a análise de resultados de experimentos feitos para a avaliação de novos produtos ou técnicas, para se julgar (e se trata, efetivamente, de julgamento pessoal) que o trabalho publicado por Séralini et al.  de nenhum modo permite que se tire conclusões, quaisquer que sejam elas. A escolha de uma linhagem de ratos, os Sprague-Dawley Harlan, capazes de desenvolver tumores “espontaneamente”, particularmente tumores mamários nas fêmeas, associada a um número muito pequeno de animais por amostra e a um pequeno número de grupos controle (um só, constituído de 10 machos e 10 fêmeas) são o suficiente para permitir um primeiro julgamento. A escolha de uma linhagem particularmente sensível a certas patologias (no caso, à tumorigênese) justifica-se se pudermos garantir um modo de por em evidência um efeito estatisticamente significativo para além dum  “ruído de fundo” muito importante; portanto, se se dispõe de número suficiente de animais por grupo (50 machos e 50 fêmeas no mínimo, segundo normas internacionais). Este nem de longe é o caso do estudo em questão. Não há, portanto, necessidade de uma análise detalhada para se levantar dúvidas quando à realidade dos efeitos descritos.


Análise crítica e contraditório dos dados

Um julgamento desse tipo não substitui, é claro, o realizado por um agrupamento de pesquisadores como a agência alemã, a australiana/neozelandesa ou a autoridade européia de segurança alimentar, grupos que reúnem pesquisadores com áreas de atuação complementares  e que realizam uma análise crítica, estabelecendo um contraditório dos dados.

Será necessário que elas se dediquem, como o vão fazer agora na França a ANSES e o conselho científico do HCB, a uma crítica ponto a ponto da experiência. Em particular será preciso saber quem realizou o trabalho, pois que de modo algum pode ter sido obra dos signatários do artigo, que nem têm os meios materiais, nem a experiência necessária e nem são da área de atuação adequada. A falta de transparência sobre esse ponto não permite garantir que as condições de realização da experiência (e não o protocolo – definitivamente contestável) foram levadas a cabo de acordo com as normas internacionais de qualidade. Maior detalhamento precisa ser obtido: composição dos regimes alimentares (não apenas o nome do fabricante, mas os resultados da análise de sua composição), teor dos resíduos de glifosato e de seus metabólitos, resíduos dos adjuvantes  presentes na formulação comercia Roundup, no caso do tratamento do milho GM com Roundup, nível de exposição dos animais do grupo Roundup, validade do tratamento estatístico apresentado pelos autores... Tudo isso é importante, mas segue sendo secundário em relação ao essencial, que são as críticas já citadas e que me permitiram emitir tão rapidamente um parecer.

Na França, na Europa, na OMS e na FAO participei de dezenas de análises críticas coletivas de dossiês toxicológicos, experiência que me dá alguma chance de rapidamente apontar o dedo para os pontos fortes e fracos de um estudo, ainda que apenas com base numa publicação bem pobre em informação e em precisão, publicação que jamais deveria ter sido publicada da forma como foi desenvolvida e apresentada.

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Leiam também o manifesto de cientistas brasileiros sobre a qualidade do artigo de Séralini (http://genpeace.blogspot.com.br/2012/10/pesquisadores-brasileiros-assinam.html) e outros artigos críticos ou de fundo em
http://genpeace.blogspot.com.br/2012/09/artigo-que-mostra-o-surgimento-de.html
http://genpeace.blogspot.com.br/2012/09/artigo-sobre-efeito-de-milho.html
http://genpeace.blogspot.com.br/2012/10/the-largest-experiment-with-human.html

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