Houve um
tempo, no início dos anos 1970, em que jovens pesquisadores, entre os quais eu
me incluía, vindos do CNRS, do INRA, do INSERM e das universidades podiam
calmamente analisar, no seio de um órgão do CNRS, as diferentes abordagens
nacionais e internacionais da avaliação de riscos alimentares e refletir sobre
possíveis melhorias. Isso tudo sob a égide de pesquisadores reconhecidos e
experientes. Ao cabo de mais de dois anos de trabalho eles publicavam um número
especial de uma revista científica repleta de propostas que eram
subsequentemente debatidas no Conselho Superior de Saúde Pública da França
(CSHPF) e postas então em vigor na legislação francesa. Um cientista oriundo
das indústrias do setor era incluído nesses trabalhos por conta de sua área de
atuação e de seu conhecimento das técnicas industriais. No seio do CSHPF também
tinham assento pesquisadores indicados pelas indústrias e um pesquisador
oriundo de uma organização de consumidores.
Siglas deste artigo
CNRS - Centro Nacional de Pesquisa
INRA - Instituto de Pesquisa Agronômica
INSERM – Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica
CSHPF - Conselho Superior de Saúde Pública da França
CGB – Comissão de Engenharia Biomolecular
ANSES – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
HCB – Conselho Superior de Biotecnologia
OMS – Organização Mundial da Saúde
FAO – Organização para Alimentação e Agricultura
Refeição tóxica
Mesmo se de
quando em vez uma manchete de jornal viesse com um título tonitruante do tipo
“Refeição Tóxica” ou “Estão nos envenenando”, enfeitado de uma caveira mais ou
menos estilizada, a mídia não intervinha em nossos trabalhos antes de seu
término e deles fazia seus relatos sem tomar partido. Circulava, entretanto, nesta
época, um documento chamado “lista de Villejuif” apresentado como proveniente
do hospital de Villejuif, especializado no diagnóstico e tratamento do câncer,
no qual aparecia uma lista de aditivos alimentares perigosos ou mesmo
cancerígenos, entre eles o ácido cítrico! Essa lista, sem fundamento
científico, ainda hoje circula, a despeito dos desmentidos oficiais. Era o
início da instilação, no espírito do consumidor, de um sentimento de
insegurança ligado aos alimentos produzidos pela indústria que não fossem mais
“naturais”.
Nota: Ver sobre a Lista de Villejuif em
e para uma imagem do documento apócrifo buscar num link
existente em
Pouco a pouco
a mídia foi-se fazendo presente em nossos debates; dois fatores aceleraram essa
tendência de forma quase simultânea: a crise da vaca louca - um problema real
de saúde pública, com riscos elevados – e o aparecimento dos OGMs, em meados
dos anos 1990.
A França foi
o primeiro a criar uma comissão especializada, em 1986, a Comissão de
Engenharia Biomolecular (CGB), encarregada de avaliar os riscos de organismos
geneticamente modificados para a saúde e para o meio ambiente, pois era
evidente que alguns dentre eles seriam lançados futuramente no mercado. Foi
apenas dez anos depois, especialmente em razão de uma política agressiva e
inadequada das empresas de biotecnologia vegetal, que uma crise se desenvolveu,
crise da qual nos vemos agora o paroxismo.
Tumores nos ratos
No último dia
19 de setembro (NT: de 2012) um artigo científico demonstrando que o milho
transgênico NK603 provocava tumores, em especial nas ratas, foi apresentando a
alguns veículos de imprensa, pouco numerosos, com grande espalhafato mediático.
Pela primeira vez na França o restante da mídia foi mantido à distância, não
tendo sido incluído na conferência privada de imprensa organizada na ocasião,
nem tendo acesso ao conteúdo que foi posto sob sigilo logo após o fim da
conferência de imprensa, impedindo-se assim que o restante da mídia pudesse
consultar os melhores pesquisadores antes da mídia concorrente mediatizar a
informação. Como o segredo não foi assim tão bem guardado, eu tive conhecimento
deste evento mediático e das linhas gerais do artigo, mesmo não tendo podido
consultá-lo. Posto que ele começou a circular um pouco antes do fim do sigilo,
eu pude rapidamente formar uma opinião sobre a qualidade dos resultados.
Não é preciso
uma longa análise, mas simplesmente experiência com toxicologia alimentar e com
a análise de resultados de experimentos feitos para a avaliação de novos
produtos ou técnicas, para se julgar (e se trata, efetivamente, de julgamento
pessoal) que o trabalho publicado por Séralini et al. de nenhum modo permite que se tire
conclusões, quaisquer que sejam elas. A escolha de uma linhagem de ratos, os
Sprague-Dawley Harlan, capazes de desenvolver tumores “espontaneamente”,
particularmente tumores mamários nas fêmeas, associada a um número muito
pequeno de animais por amostra e a um pequeno número de grupos controle (um só,
constituído de 10 machos e 10 fêmeas) são o suficiente para permitir um
primeiro julgamento. A escolha de uma linhagem particularmente sensível a certas
patologias (no caso, à tumorigênese) justifica-se se pudermos garantir um modo
de por em evidência um efeito estatisticamente significativo para além dum “ruído de fundo” muito importante; portanto,
se se dispõe de número suficiente de animais por grupo (50 machos e 50 fêmeas
no mínimo, segundo normas internacionais). Este nem de longe é o caso do estudo
em questão. Não
há, portanto, necessidade de uma análise detalhada para se levantar dúvidas
quando à realidade dos efeitos descritos.
Análise crítica e contraditório dos
dados
Um julgamento
desse tipo não substitui, é claro, o realizado por um agrupamento de
pesquisadores como a agência alemã, a australiana/neozelandesa ou a autoridade
européia de segurança alimentar, grupos que reúnem pesquisadores com áreas de
atuação complementares e que realizam
uma análise crítica, estabelecendo um contraditório dos dados.
Será
necessário que elas se dediquem, como o vão fazer agora na França a ANSES e o
conselho científico do HCB, a uma crítica ponto a ponto da experiência. Em
particular será preciso saber quem realizou o trabalho, pois que de modo algum
pode ter sido obra dos signatários do artigo, que nem têm os meios materiais,
nem a experiência necessária e nem são da área de atuação adequada. A falta de
transparência sobre esse ponto não permite garantir que as condições de
realização da experiência (e não o protocolo – definitivamente contestável)
foram levadas a cabo de acordo com as normas internacionais de qualidade. Maior
detalhamento precisa ser obtido: composição dos regimes alimentares (não apenas
o nome do fabricante, mas os resultados da análise de sua composição), teor dos
resíduos de glifosato e de seus metabólitos, resíduos dos adjuvantes presentes na formulação comercia Roundup, no
caso do tratamento do milho GM com Roundup, nível de exposição dos animais do
grupo Roundup, validade do tratamento estatístico apresentado pelos autores...
Tudo isso é importante, mas segue sendo secundário em relação ao essencial, que
são as críticas já citadas e que me permitiram emitir tão rapidamente um
parecer.
Na França, na
Europa, na OMS e na FAO participei de dezenas de análises críticas coletivas de
dossiês toxicológicos, experiência que me dá alguma chance de rapidamente
apontar o dedo para os pontos fortes e fracos de um estudo, ainda que apenas
com base numa publicação bem pobre em informação e em precisão, publicação que
jamais deveria ter sido publicada da forma como foi desenvolvida e apresentada.
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Leiam também o manifesto de cientistas brasileiros sobre a qualidade do artigo de Séralini (http://genpeace.blogspot.com.br/2012/10/pesquisadores-brasileiros-assinam.html) e outros artigos críticos ou de fundo em
http://genpeace.blogspot.com.br/2012/09/artigo-que-mostra-o-surgimento-de.html
http://genpeace.blogspot.com.br/2012/09/artigo-sobre-efeito-de-milho.html
http://genpeace.blogspot.com.br/2012/10/the-largest-experiment-with-human.html
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