Autor: HERTON ESCOBAR
23 Abril 2015 | 14:00
Instituto Nacional de Câncer (Inca) diz que sementes
geneticamente modificadas são responsáveis pelo país ser o maior consumidor de
pesticidas no mundo. Representantes do setor agrícola e da biotecnologia dizem
que diagnóstico é “grosseiro”, não considera outros fatores e não retrata a
realidade no campo.
O Brasil é o maior consumidor de
agrotóxicos do mundo, e o segundo maior produtor de transgênicos, com mais de
42 milhões de hectares plantados com soja, milho e algodão geneticamente
modificados.
Uma coisa está relacionada à
outra? O Instituto Nacional de Câncer (Inca) diz que sim, apesar de não haver
dados que comprovem isso diretamente. Em um posicionamento oficial sobre o uso
de agrotóxicos e seus impactos na saúde, publicado em 10 de abril, o instituto
chama atenção para o fato de que o Brasil é o maior consumidor de defensivos
agrícolas do mundo, e atribui esse consumo elevado ao plantio de lavouras
transgênicas.
“É importante destacar que a
liberação do uso de sementes transgênicas no Brasil foi uma das responsáveis
por colocar o país no primeiro lugar do ranking de consumo de agrotóxicos, uma
vez que o cultivo dessas sementes geneticamente modificadas exigem o uso de
grandes quantidades destes produtos”, afirma o Inca, que é vinculado ao
Ministério da Saúde e fica no Rio de Janeiro. Para ler a íntegra do
posicionamento, clique aqui: INCA-Agrotoxicos-Posicionamento
O documento, porém, não
apresenta nenhuma estatística ou trabalho científico que corrobore essa
afirmação. Procurado pela reportagem, o instituto forneceu uma pequena lista de
referências que dariam sustentação ao seu posicionamento, incluindo reportagens
e artigos científicos. Desses, apenas dois (um deles com mais de 10 anos)
traçam uma relação estatística entre plantio de transgênicos e aumento no
consumo de agrotóxicos, e nenhum deles é específico para o Brasil: GMO-PesticideUse-Benbrook
e SojaGM-Pelaez-2004
Segundo Márcia de Campos Mello,
toxicologista da Unidade Técnica de Exposição Ocupacional, Ambiental e Câncer
do Inca, o consumo de agrotóxicos no Brasil aumentou de aproximadamente 700
milhões de litros por ano em 2005 (dois anos após a legalização dos
transgênicos no País) para cerca de 1 bilhão de litros por ano, em 2013.
“Quando você faz a correlação dessas datas, observa-se que houve um aumento
muito grande no consumo de agrotóxicos (desde a liberação dos transgênicos)”,
justifica.
“Me assusta muito um instituto
como o Inca, que trabalha com câncer — uma doença multifatorial, que não se
presta a generalizações grosseiras — fazer esse tipo de generalização com a
biotecnologia”, diz a bioquímica Adriana Brondani, diretora-executiva do
Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB). O uso intensivo de
agrotóxicos no país, segundo ela, deve-se a uma série de fatores relacionados à
agricultura brasileira. “O Inca faz um diagnóstico equivocado, olhando apenas
para os dados brutos, sem levar em conta o que acontece no campo.”
“Somos o maior consumidor de
agrotóxicos porque somos a maior agricultura tropical do mundo.” - Júlio
Britto, coordenador de agrotóxicos do Ministério da Agricultura
O Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (MAPA) confirma que o consumo de agrotóxicos cresceu
significativamente no Brasil nos últimos dez anos, e que o País é hoje o maior
consumidor desses produtos no mundo. Mas discorda da avaliação feita pelo Inca.
Segundo Júlio Britto, coordenador geral de Agrotóxicos e Afins do MAPA, o
aumento no uso de agrotóxicos no País é reflexo do aumento da área plantada e
da produção agrícola, independentemente de ela ser transgênica ou não.
“Vivemos num país tropical, de
clima quente, em que se planta o ano inteiro, com alta incidência de pragas”,
diz. As mesmas condições excepcionais de clima e solo que favorecem a
produtividade das lavouras favorecem o crescimento de ervas daninhas, insetos e
outras pestes tropicais. “Não usamos agrotóxicos porque queremos, mas porque
precisamos. Sem defesa das lavouras, você não produz”, completa Britto,
ressaltando que, relativamente ao tamanho da área plantada, o Brasil usa muito
menos agrotóxicos (por hectare) do que países do primeiro mundo, como o Japão.
No caso dos transgênicos Bt, que
são resistentes ao ataque de determinadas lagartas, houve uma “redução
drástica” no uso de inseticidas contra esses insetos: de 20 para 4 aplicações
por lavoura, segundo Adriana. “Ainda assim, a plantação é atacada por outras
pragas, para as quais é necessário aplicar outros produtos”, completa.
Ameaças múltiplas
A cultura transgênica mais
plantada no Brasil e no mundo é a soja resistente ao herbicida glifosato,
desenvolvida pela Monsanto. Com o aumento da área plantada dessa variedade,
aumentou também o uso do glifosato, enquanto que o uso de outros herbicidas diminuiu,
segundo Britto. Paralelamente, aumentou o uso de inseticidas e fungicidas,
devido ao surgimento de novas pragas, como a ferrugem da soja (causada por um
fungo) e a lagarta helicoverpa, para as quais os transgênicos não oferecem
proteção.
Quando todos os fatores são
computados, diz Britto, o volume total de agrotóxicos usados no País aumentou
apesar das vantagens oferecidas pelos transgênicos, e não por causa deles.
A conclusão é clara: o aumento no
uso de agrotóxicos nada tem a ver com os transgênicos, mas com a agricultura
intensiva brasileira.” - Pesquisadores, em artigo publicado no Jornal da
Ciência da SBPC
Em uma
carta publicada pelo Jornal da Ciência da SBPC no dia 4 de maio, cinco
pesquisadores também desmontam o suposto elo entre transgênicos e aumento no
uso de pesticidas: “De fato, o Brasil usa agrotóxicos em centenas de diferentes
cultivos, assim como na pecuária, mas os transgênicos representam apenas 30% da
área plantada: são 160 milhões de hectares cultivados com as mais diversas
culturas no país contra apenas 45 milhões com cultivos transgênicos. Por isso,
a contribuição dos transgênicos no consumo de agrotóxicos é menor. Esta
primeira inferência é claramente referendada pela análise do aumento do uso de
agrotóxicos nos últimos 10 anos e do aumento da área plantada com transgênicos:
para o primeiro o valor é de 200%, enquanto a área com transgênicos cresceu
mais de 1000%! O que justifica, então, o aumento do uso de agrotóxicos? Basta
olhar o aumento da produtividade geral da agricultura brasileira nos mesmos 10
anos: foi de 200%. Este valor não é uma coincidência, mas resulta da
intensificação do processo produtivo, que demanda um controle mais rígido das
ervas daninhas e das pragas em geral. A conclusão é clara: o aumento no uso de
agrotóxicos nada tem a ver com os transgênicos, mas com a agricultura intensiva
brasileira.”
A carta é assinada pelo
geneticista Paulo Paes de Andrade (da UFPE), pelo microbiólogo Francisco
Nóbrega (ex-ICB/USP), o sociólogo Zander Navarro (Embrapa), o farmacêutico
Flávio Finardi Filho (FCF/USP) e o bioquímico Walter Colli (IQ/USP). O texto
foi escrito em resposta a um artigo,
também publicado no Jornal da Ciência, no dia 30 de abril, em que três
pesquisadores ligados ao Instituto de Estudos Avançados da USP (Hugh Lacey,
José Corrêa Leite, Marcos Barbosa de Oliveira, e Pablo Rubén Mariconda)
defendem o relatório do Inca e criticam a atuação da Comissão Técnica Nacional
de Biossegurança (CTNBio) na aprovação de transgênicos no Brasil.
“Cada um tem o seu discurso, pela
causa com que está comprometido”, afirma Márcia, do Inca. “A nossa causa é
proteger a saúde da população.” Segundo ela, ainda não há garantias de que os
transgênicos sejam seguros para a saúde. Isso, apesar de eles já serem
plantados e consumidos em larga escala, há mais de duas décadas, com a
aprovação dos órgãos reguladores de vários países do mundo, sem qualquer
registro de efeitos adversos à saúde humana. “Os efeitos só poderão ser notados
com o tempo”, argumenta. “Nossa posição é reduzir o uso de agrotóxicos e
incentivar a agricultura orgânica.”
Polêmica do glifosato
O posicionamento do Inca surge
na sequência de uma outra publicação polêmica: Um relatório da Agência
Internacional para Pesquisa do Câncer (IARC, em inglês), um braço da
Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em 20 de março, reclassificando o
herbicida glifosato como uma substância “provavelmente carcinogênica (causadora
de câncer) para seres humanos”. Veja o relatório aqui: http://goo.gl/j3IU4i
O glifosato é o herbicida mais
produzido no mundo, e é classificado por várias agências reguladoras —
incluindo a Agência de Proteção Ambiental (EPA), nos Estados Unidos, e a
Anvisa, no Brasil — como não carcinogênico e de baixa toxicidade, tanto para o
ambiente quanto para os seres humanos. Nas lavouras transgênicas, o fato de a
soja ou o milho serem resistentes a ele permite que os agricultores pulverizem
toda a plantação com glifosato, para matar todas as ervas daninhas com um único
produto, sem prejudicar a lavoura. Por isso, com a adoção dos transgênicos,
aumentou o consumo de glifosato e diminuiu o consumo de outros herbicidas.
A publicação
inicial feita pela IARC, na revista The Lancet, inclui apenas uma descrição
muito breve dos dados científicos que serviram de base para a reclassificação.
Segundo a agência, há “evidências limitadas de carcinogenicidade” do glifosato
para seres humanos em casos de linfoma não-Hodgkin, “evidências convincentes”
de que o glifosato pode causar câncer em animais de laboratório e “evidências
suficientes” de carcinogenicidade em células humanas in vitro. Um relatório
mais detalhado é esperado para os próximos meses.
“As três linhas de evidência nos
dizem mais ou menos a mesma coisa, que devemos nos preocupar com isso”, disse
ao jornal The New York Times Aaron Blair, um epidemiologista aposentado do
Instituto Nacional do Câncer dos EUA, que coordenou o trabalho de revisão do
herbicida. Com isso, o glifosato passa a fazer parte do Grupo 2A, que inclui
substâncias e atividades “provavelmente carcinogênicas”, como acrilamida, beber
chá mate quente, trabalhar em salões de beleza, fazer plantões noturnos,
fabricar vidro e respirar fumaça de madeira queimada dentro de casa. Veja a
lista completa aqui: http://goo.gl/VVEQ4y
“Do meu conhecimento, não há
nada que justifique essa classificação”, diz o toxicologista Flavio Zambrone,
da empresa Planitox. “Temos que esperar a publicação definitiva (do IARC) para
ver se há algum dado escondido que dê razão a isso. Não dá para transmitir uma
notícia dessa forma, sem base científica, criando pânico na população.” Segundo
ele, os estudos mencionados pelo IARC na publicação inicial são trabalhos já “desacreditados”
pela comunidade científica.
Outros acusam a agência de ter
selecionado estudos de forma enviesada, destacando uma minoria que mostra
efeitos negativos e ignorando uma maioria que mostra não haver risco para a
saúde.
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Post atualizado às 18h15 do dia 4 de maio, para acrescentar
informações publicadas no Jornal da Ciência da SBPC.
Tags: agrotóxicos, biotecnologia, inca, milho transgênico,
OGMs, organismos geneticamente modificados, soja transgênica, transgênicos