No que diz respeito à discussão sobre o uso da engenharia genética na agricultura nosso país tem entrado em uma perigosa rota do vale tudo, em que qualquer um pode falar o que quer. Em muitos casos as questões são levadas para um nível tão absurdamente baixo que nem mesmo vale a pena comentá-las. Em geral os cientistas não se dão ao trabalho de fazer comentários a críticas nesse nível porque são pessoas demasiadamente ocupadas e procuram dedicar o tempo escasso para a geração de conhecimento. Por outro lado há uma enorme confusão sobre o que é o debate político e o que o debate científico. No debate científico há formas de se demonstrar qual grupo tem a melhor resposta (como bem colocou o Prof. Francisco Nóbrega em seu artigo “Validação por plebiscito?”). No debate científico, mais cedo ou mais tarde se demonstrará que é a terra que gira em torno do sol, mesmo que o debate político tente mostrar por centenas de anos que é o contrário.
Muito se tem escrito sobre o feijão transgênico resistente ao mosaico dourado. Alguns comentários são sobre questões de biologia molecular e mostram o completo despreparo de quem os escreve. É assim o comentário não assinado feito no site “Em pratos limpos” sobre a entrevista concedida pelo Dr. Pedro Arraes (presidente da Embrapa) ao Valor Econômico. Embora esse seja também um dos casos que a resposta não valha a pena, diante dos absurdos tão cabais, cabe um comentário.
O processo de liberação comercial do feijão está disponível na CTNBio há meses e qualquer cidadão pode requisitar uma cópia. Mais recentemente foi disponibilizado para download sem necessidade de requisição. Uma prova de que a Embrapa busca a transparência e não tem absolutamente nada a esconder da sociedade brasileira. Tem sido assim ao longo da sua história de sucesso reconhecida pelo mundo. Apenas uma página foi colocada em sigilo com o único objetivo de proteger o patrimônio público, uma vez que pode ser alvo de proteção intelectual e geração de divisas para o país. A falta dessa página em nada impede uma avaliação de biossegurança. Aliás, contém informações que não são requeridas por autoridades de biossegurança de vários países.
A estratégia utilizada para geração do feijão GM é muito bem conhecida e tem sido intensamente estudada nos últimos 20 anos. Na verdade, o silenciamento gênico para suprimir genes virais tem sido observado desde os anos 50. O mecanismo molecular do silenciamento gênico foi elucidado quase que simultaneamente por grupos na Austrália, Estados Unidos e Inglaterra e levou aos pesquisadores americanos a ganhar o Prêmio Nobel de Medicina em 2006. Mas o “Em pratos limpos” diz que no caso do feijão “os proponentes ainda não sabem explicar muito bem como funciona o transgene criado”. Todas essas questões estão sim muito bem esclarecidas no processo apresentado à CTNBio e nas publicações sobre o feijão na revista Nature Biotechnology (volume 27 de 2009) e MPMI (volume 20 de 2007). Essas são as melhores revistas na área de biotecnologia e fitopatologia. Seria interessante que o autor do comentário se assessorasse de alguém com capacidade de entender essas questões.
As formas pelas quais RNAs de interferência silenciam a expressão gênica. A produção de RNAs fita dupla pode ser comandada a partir de genes da própria célula ou a partir de transgenes. http://www.nature.com/nrg/journal/v8/n3/images/nrg2006-f1.jpg
As formas pelas quais RNAs de interferência silenciam a expressão gênica. A produção de RNAs fita dupla pode ser comandada a partir de genes da própria célula ou a partir de transgenes. http://www.nature.com/nrg/journal/v8/n3/images/nrg2006-f1.jpg
Também citam um artigo da Nature Biotecnology em que se mostrou “outros cientistas criticando a eficácia do projeto”. Pois bem, esse artigo citado, escrito pelo grupo italiano de Lucioli et al. é um artigo teórico em que dizem que provavelmente a estratégia baseadas em proteínas e pequenos RNA não funcionariam para geminivírus. Esse artigo foi contestado pela realidade e por outro artigo escrito por cientistas brasileiros e publicado como resposta àquele artigo na mesma revista Nature Biotecnology em 2009. Lucioli & Tavazza tiveram a chance de fazer mais um comentário e disseram que na verdade eles se referiram às estratégias baseadas em proteína e que as “opiniões pessoais” expressadas sobre pequenos RNA estavam baseadas no fato de não haver um caso demonstrando a eficácia da nossa estratégia. Pois bem, esse caso foi justamente o feijão. Na verdade, nós no Brasil fomos pioneiros em demonstrar que essa estratégia funciona para vírus de DNA e abrimos a porta para que isso fosse aplicado a outros vírus. Foi justamente isso que aconteceu. Depois que demonstramos que era possível, outros grupos desenvolveram plantas transgênicas resistentes a geminivírus usando essa mesma estratégia: tomates em Cuba, milho na África do Sul e Mandioca nos Estados Unidos e África. É só procurar a literatura científica.
Por fim o artigo anônimo de “Em pratos limpos” diz que “foram encontradas apenas 26 proteínas enquanto outros estudos acharam mais de 500 também no feijão”. Por si só isso mostra a total incapacidade do autor em fazer uma avaliação rasteira desse processo. Obviamente que o feijão tem dezenas de milhares de proteínas e 26 dessas foram usadas como marcadores para estudar possíveis alterações. Nenhuma diferença foi encontrada. A comparação feita em feijoeiros cultivados em Goiás, Paraná e Minas Gerais foi entendida a 5 tipos comerciais de feijoeiros cultivados por sete anos (em distintas safras em cada ano) nas regiões Nordeste, Centro Oeste, Sul e Sudeste. Nenhuma comparação mostrou qualquer diferença biológica entre o feijoeiro GM e os feijoeiros cultivados no Brasil.
Os dados de avaliação do feijão GM foram discutido em vários congressos internacionais em que estava presente a nata dos cientistas da área de biologia vegetal. A discussão dos dados feita em alto nível sempre mostrou que os resultados obtidos são extremamente robustos para atestar a segurança para o consumo e cultivo no Brasil. Não se pode esperar unanimidade entre os cientistas. Seria péssimo que assim fosse. Seria um veneno para o desenvolvimento do conhecimento. Mas podemos dizer que quando o processo foi apresentado aos melhores cientistas da área de biologia vegetal, biologia molecular, nutrição, medicina (entre outros) do Brasil, Índia, México, Estados Unidos, Japão, China, Canadá, Europa e vários outros países, houve um consenso em afirmar que os dados eram na verdade mais que suficiente para atestar a segurança desse feijão. Certamente a CTNBio tem membros em quantidade e qualidade mais que suficientes para fazer uma avaliação baseada no conhecimento humano disponível e necessário para julgar a segurança o feijão resistente ao mosaico dourado. Qualquer avaliação fora disso coloca a nossa população, agricultura e economia em risco.
Paulo Paes de Andrade
Departamento de Genética/ UFPE
e
CTNBio
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