Em entrevista especial publicada hoje, sexta, 21 de
fevereiro de 2014, e intitulada "O avanço do cultivo transgênico
inviabiliza a produção orgânica e agroecológica", a advogada da AS-PTA, Katya
Isaguirre, faz uma série de considerações sobre a norma de coexistência editada
pela CTNBio (a conhecida RN-04), muitas delas refletindo uma falta de
conhecimento técnico grande. A falta de embasamento técnico e científico,
aliás, foi o que levou dois desembargadores a rechaçarem o pedido de suspensão
da RN-04, pedido pela entidade. O texto integral da entrevista está disponível
em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/528480-o-avanco-do-cultivo-transgenico-inviabiliza-a-producao-organica-e-agroecologica-entrevista-especial-com-katya-isaguirre
É lamentável que uma advogada declare como letra morta um
artigo de lei que não foi revogado: o agricultor que decidiu plantar uma
variedade de cultivo transgênico e, por mau manejo ou mesmo inadvertidamente, “contamina”
o plantio de um vizinho que tenha decidido por plantar este mesmo cultivo
convencional, pode ser processado e terá que pagar indenizações, sim! A questão
central é: como se prova que houve “contaminação” a partir de um determinado
vizinho? Esta é uma questão técnica, que a advogada ou desconhece ou finge
desconhecer: se as normas de coexistência da CTNBio forem obedecidas, a “contaminação”
da safra do vizinho por fluxo de pólen do plantio transgênico será muito baixa,
provavelmente inferior ao mínimo estabelecido como limiar para comercialização
dos grãos como convencionais ou mesmo como orgânicos (vai cair abaixo do limite
de detecção). Não cabe, nesta peleja, avaliar individualmente alguns pés de
milho, mas a produção que está sendo comercializada, pois é ela que vai
determinar o lucro ou o prejuízo do agricultor. Também não faz sentido dizer
que o agricultor convencional vai plantar seus grãos como sementes na próxima
safra e com isso eventualmente aumentar a presença de plantas GM na sua roça: o
agricultor tem obrigação de escolher grãos colhidos em lugares isolados dentro
de seu terreno, que minimizem cruzamentos com variedades indesejadas.
Alternativamente, ele pode plantar uma pequena parcela com outra data de
florescimento para a obtenção de sementes. Por fim, ele pode obter sementes não
GM dos programas do Governo Federal de seus parceiros nos estados. Tudo isso é
sabido, derna que King Kong era sagui.
Não conhecemos a documentação apresentada como suporte ao
pleito da AS-PTA. Pela lógica, ela deveria ter sido levada para a consideração
técnica da CTNBio ANTES de ser empregada num processo legal:
evidentemente, se houvesse cabimento nas informações, a CTNBio rapidamente
reveria sua normativa, sem necessidade de uma interrupção de vendas e plantio,
que seria a consequência do acatamento do pleito da AS-PTA pela Justiça. E, de
toda forma, deveria tornar-se pública, para que todos pudesse examinar as
evidências. Mas a AS-PTA não tem transparência alguma, embora reclame da
CTNBio: não há documentos desta natureza disponíveis para download, embora haja
muitos outros interessantes para o estudo de agroecologia e os eventuais
conflitos com a agricultura tecnificada moderna, seja ela transgênica ou não.
O fato é que, até agora, a CTNBio aparentemente também desconhece as evidências
empregadas neste processo. Se forem as mesmas já avaliadas pela Comissão, então
têm completa razão a relatora do processo, a desembargadora Marga Inge Barth
Tessler, e também o desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, que
votaram para manter a sentença: não há consistência técnica nem científica
nelas.
Quanto ao conceito mesmo de coexistência, engana-se
redondamente a advogada quando confunde isso com preservação da biodiversidade:
a coexistência é um tema meramente comercial, como já indicado no próprio
título da entrevista no portal: “O avanço do cultivo transgênico inviabiliza a
produção orgânica e agroecológica”. Não se trata aqui, como sugerido pela
advogada no meio da entrevista, de que a coexistência deveria exigir “que se
garantam padrões mínimos de proteção à biodiversidade, direito de informação
aos consumidores para que eles possam escolher os alimentos que irão consumir e
direito de escolha aos agricultores para que decidam qual modelo de semente
irão utilizar: transgênica ou crioula”. As normas de coexistência visam apenas
garantir a contiguidade de diferentes tipos de cultivo, respeitadas as regras
próprias de cada um deles estabelecidas pelo MAPA, permitindo a venda da safra
nas condições pretendidas.
A preservação da biodiversidade é tema separado, já avaliado
e decido pela CTNBio. A questão de quem guarda o patrimônio genético do milho
no Brasil e da participação dos agricultores nisso é tema bem conhecido e não
está incorporado na normativa porque não cabe nela. Se a AS-PTA deseja rever
estas avaliações, deve encontrar evidências de perda desta biodiversidade (no
caso, só se pode estar falando de variedades locais de milho) e, mais
ainda, que esta perda é devida à “contaminação” pelas variedades GM. Ora, a
AS-PTA sabe que provar isso é simplesmente impossível, porque não há uma
relação específica entre transgênicos e redução de diversidade de milho, nem no
Brasil, nem em parte alguma do Mundo.
Também erra a advogada em imaginar que há diferentes padrões
de fluxo gênico de milho em diferentes áreas de cultivo no Brasil. É evidente
que a temperatura e a umidade afetam a viabilidade do pólen, uma vez liberado,
e que a velocidade do vento determina seu alcance (embora, muitas vezes, chegue
inativo à florada receptora). Mas isso
ocorre em todas as regiões do Brasil e a regra foi estabelecida considerando as
condições mais propícias. Basta usar o bom senso. Da mesma forma, erra
gravemente a advogada ao comparar regras para sementes com regras para grãos.
Este assunto técnico não é, naturalmente, da alçada do pessoal de Direito, mas
eles deviam se consultar com especialistas de verdade, e não com os consultores
de araque que, parece, lhes estão servindo de guias.
Quanto aos cultivos orgânicos, a douta advogada esqueceu uma
informação fundamental: as normas exigidas pelo MAPA para produção orgânica são
MUITO MAIS RÌGIDAS do que as determinadas pela RN-04: é muitíssimo improvável que
possa haver fluxo gênico entre milho GM e alguma variedade cultivada sob regime
orgânico de verdade, porque a distância entre as roças seria de, no mínimo, 500
metros! De fato, cabe ao produtor orgânico, muito mais do que ao convencional
ou transgênico, proteger seus cultivos, uma vez que contaminações com
pesticidas, além de cruzamentos inesperados com outras variedades, têm que ser
evitadas.
Para concluir, a tal inviabilização da agricultura agroecologia
(seja orgânica ou outra qualquer) não é real: nos Estados Unidos e no Canadá,
que usam normas de coexistência menos rígidas que as nossas, tem havido um
crescimento contínuo da agricultura orgânica e de outras formas alternativas de
Agricultura. Os dois países cultivam muito mais variedades transgênicas que o
Brasil e os EUA têm uma área quase duas vezes maior que a brasileira cultivada
com plantas GM. É evidente que as duas (ou mais) formas de agricultura podem
conviver perfeitamente e que esta discussão é bizantina, levada no foro errado
e visa exclusivamente atrapalhar o agronegócio, sem nenhum proveito real para
os pequenos agricultores.
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