Paulo Paes de Andrade
Ontem (dia 9 de março de 2012) teve lugar o lançamento do livro Tecnociência e cientistas: cientificismo e controvérsias na política de biossegurança brasileira, na Livraria Cultura do Shopping Center Iguatemi, em Campinas. O texto, de autoria da jornalista Márcia Maria Tait Lima (veja também http://www.cgi.unicamp.br/unicamp/divulgacao/2012/03/10/livro-de-marcia-tait-aborda-politica-de-biosseguranca-brasileira) está em grande parte baseado na sua dissertação de mestrado (As concepções de cientistas brasileiros sobre a tecnociência: um estudo a partir da CTNBio, 2009, Campinas, 159 pp), disponível na Biblioteca Virtual da Unicamp, no endereço http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000479680.
A partir de declarações de cientistas sobre o tema de biossegurança coletadas em vários anos de entrevistas e textos no Jornal da Ciência (fev/2002 a maio/2008), a autora elabora um quadro de concepções divergentes e por vezes antagônicas entre detentores do conhecimento na área, sobretudo quanto ao modus operandi da CTNBio. Em sua conclusão afirma, com razão, que a ciência não forma um bloco monolítico de opinião única, o que é verdade para todas as áreas da ciência.
O que faltou esclarecer é como o conhecimento científico é construído: por estranho que possa soar aos ouvidos de pessoas mais habituadas ao contexto sociológico, a ciência é construída de forma dialética e segue, na sua área, as normas claras do materialismo dialético. Por isso, ela não pode prescindir do contraditório, que contribui tanto quanto a opinião da maioria, para a evolução das teorias. Entretanto, é imprescindível lembrar outro elemento da construção da ciência: vale sempre a opinião majoritária, que apóia teorias e decisões. As demais opiniões são a motivação de novos experimentos e de novos resultados, que eventualmente farão que a maioria mude de lado.
Parece outra vez estranho: afinal, os cientistas não sustentam sua opinião? Mudam de lado quando convém? Então, não existe uma verdade em ciência? Exato: não existe uma verdade eterna em ciência, a verdade de hoje pode ser a mentira de amanhã, ou pelo menos a meia verdade de amanhã. Mas, enquanto a opinião majoritária prevalecer, será esta a verdade científica. Haveria outra forma da ciência ser construída? Julgam alguns que por consenso se chegaria a uma teoria mais adequada. Mas, na verdade, o consenso leva a uma colcha de retalhos conceitual, sem utilidade prática e, muitas vezes, um empecilho seríssimo à tomada de decisões.
A autora também aponta para um reducionismo de muitos dos membros da CTNBio no seu trabalho na comissão. Este afunilamento da forma de avaliar as questões de biossegurança tem sido uma crítica comum à CTNBio. E, se a função da comissão fosse fazer análise de risco e tomar uma decisão de governo, a visão centrada em riscos biológicos seria inadequada. Assim, a dissertação (assim como o livro) resvala para críticas ao modus operandi da CTNBio na suposição de que a comissão faça muito mais do que é sua função. Mas, afinal, qual é a função da CTNBio?
A autora historia adequadamente a forma como foi criada a CTNBio e como ganhou poder na nova lei e um certo distanciamento das questões políticas, permanecendo atrelada ao MCT. E mesmo diz claramente que à comissão cabe avaliar riscos dos OGMs e auxiliar o Conselho Nacional de Biossegurança - CNBS na definição das políticas públicas em biossegurança de OGMs. Também está claro no texto que o órgão responsável pela definição destas políticas é o CNBS. Mas falha em apontar um vácuo operacional na legislação brasileira: quem, por lei, decide pela liberação comercial de um produto levando em conta seus impactos sociais e econômicos? O CNBS pode tomar a si esta função, quando julgar necessário, ou quanto a tal solicitado pela CTNBio. E por ninguém mais. Ocorre que a CTNBio NÃO TEM o papel de avaliar impactos sociais (inclusive culturais) e econômicos, devendo ater-se à avaliação de risco. Portanto, em princípio, ela jamais pedirá ao CNBS que avalie estes parâmetros. Caberá ao CNBS tomar a iniciativa.
Pela sua formação, o CNBS ouve todos os atores mais importantes dos vários setores da sociedade, sejam intransigentes defensores da agroecologia, sejam ruralistas com total dedicação ao agronegócio, sejam ainda os muitos grupos sociais no meio destes extremos. Se as decisões da CTNBio, que versam exclusivamente sobre a biossegurança ambiental e em saúde humana e animal de um certo produto, têm sido extrapoladas como decisões finais de liberação comercial é porque nunca houve uma proibição de comercialização pelo CBNS que, até agora, entendeu que os impactos sociais e econômicos dos OGMs considerados seguros pela CTNBio estão dentro de um quadro de disputas econômicas normal na sociedade capitalista globalizada.
Devido a esta falta de clareza sobre o detentor da instância última de decisão (que, por lei é o CNBS), muitos autores terminam por imputar à CTNBio a decisão final. Na prática, de fato, tem sido assim, porque as questões sociais e econômicas não tem sido consideradas suficientemente graves para que o CNBS impeça a comercialização de um produto considerado seguro ao ambiente e à saúde humana e animal pelo órgão responsável por isso. Mas a falta de clareza do texto jurídico e mesmo do modus operandi nacional na decisão de liberação comercial de OGM não justifica a exigência de que a CTNBio faça, contra a legislação e extrapolando sua expertise, mais do que avaliação de risco. Que conhecimentos são importantes na avaliação de risco?
Aqui retomamos o tema do reducionismo: quantas diferentes visões do problema de segurança ambiental e de saúde precisamos ter para chegar a uma decisão sobre a biossegurança de um OGM? Aqueles que confundem avaliação de risco (função da CTNBio) com análise de risco (função do CNBS), pedem que a CTNBio olhe os aspectos sociais e econômicos do produto em estudo. Mas, por mais que sejam interessantes estes temas, eles não cabem nas discussões da CTNBio. Não é uma questão de reducionismo, é uma questão de foco e, especificamente, de foco determinado por lei. Vantagens econômicas da tecnologia são tão inúteis na decisão dentro da CTNBio quanto as desvantagens. Se um produto não for competitivo, quem vai decidir é o mercado (inclusive os agentes reguladores, como o MAPA), jamais a CTNBio. Se grupos minoritários crêem que podem ser prejudicados, trazem suas demandas à CTNBio pelos seus porta-vozes na comissão ou por outras vias (inclusive consulta e audiência pública) e ensejam discussões na CTNBio, mas a decisão final será baseada nos aspectos de biossegurança ligados à avaliações dos riscos. De fato, um posicionamento da CTNBio quanto aos aspectos sociais e econômicos seria temerário, já que seus membros não têm esta formação e treinamento para tal.
Porque afinal insistem alguns em pedir da CTNBio atenção às questões sociais e econômicas? Em parte por não entenderem ou não aceitarem que a função da CTNBio está restrita à avaliação de risco. Em parte também pela confusão ocasionada pela própria CTNBio, que editou normas de coexistência e regras de monitoramento que extrapolam suas funções: coexistência é uma questão econômica e monitoramento é gestão de riscos, não avaliação de riscos. Todas estas incursões da CTNBio em áreas que não são suas resultam da pressão popular, de resposta a demandas legais e da ausência clara de um órgão responsável por estas normas e regras. Como conseqüência, há um reforço da confusão existente no público em geral e até entre os indivíduos mais ligados à avaliação de risco (incluso membros da própria CTNBio) quanto ao papel da CTNBio.
Cremos estarem esclarecidos alguns pontos importantes:
a) A CTNBio não leva em conta os aspectos sociais e econômicos de um produto na sua decisão final de biossegurança de um produto. E não o faz porque isso transcende sua função, que é a avaliação de riscos, e porque seus membros não tem nem a formação nem o treinamento para tal.
b) Ainda assim, estes assuntos podem ser discutidos, mas a discussão resultará, no máximo, numa recomendação de avaliação pelo CNBS.
c) Pelo seu foco exclusivo em biossegurança ambiental e de saúde, a CTNbio prescinde de uma visão holística, embora não prescinda de uma visão multidisciplinar.
d) Nas suas decisões esta visão está patente nos pareceres que cobrem os mais diversos aspectos do produto, desde que ligados à avaliação de seus riscos.
e) O método seguido pela comissão é o que segue a ciência. Não existem dois métodos científicos. Os eventuais conflitos de opinião são resolvidos, como de hábito na ciência, por maioria.
Caro Paulo,
ResponderExcluirFico grata pelos comentários sobre meu livro. Apenas coloco mais algumas questões não necessariamente para serem respondidas, também não teria boas respostas para muitas delas...
Mas achei interessante especialmente o que coloca sobre a resolução de conflitos na ciência por maioria.
Mas qual "maioria" seria esta? Numérica? De apoio das disciplinas ou grupos com maior poder, reconhecimento dentro da própria "comunidade científica" - que segmento - quais as origens desse reconhecimento?
Colocar as decisões que envolvem aspectos de comercialização e outros para fora da CTNBio, onde concordo que é seu lugar, não resolveria a questão do reducionismo das avaliações científicas ou políticas sobre riscos que têm marcado as políticas públicas de biossegurança, reducionismo que muitas vezes não se dá por desconhecimento ou falta de uma visão holística das questões de risco, embora isso também ocorra.
Cordialmente, Márcia Tait
Cara Márcia.
ResponderExcluirObrigado pela leitura de nossas considerações e pelas suas perguntas.
Como o texto da resposta ficou meio comprido, fiz um novo post no blog: Maioria e reducionismo na CTNBio
Estou aberto para continuarmos o diálogo.
Cordialmente,
Paulo Andrade