quarta-feira, 8 de maio de 2013

Segurança do feijão GM da Embrapa: sobre a improvável existência de siRNA off target

A interferência de RNA é um processo bem conhecido, apesar de ser uma descoberta recente. O número total de artigos científicos sobre este assunto ultrapassa a dezena de milhar e a Figura 1 abaixo mostra a evolução do número de publicações acessíveis pelo portal do NCBI (www.ncbi.nlm.nih.gov) nos últimos 14 anos, demonstrando um grande interesse neste assunto por parte da comunidade científica.


Figura 1: Evolução do número de publicações científicas indexadas e acessíveis no portal do NCBI, de 2000 a 2013. Observa-se uma clara tendência a aumento sustentado, indicando o interesse que este assunto desperta na comunidade científica. A busca foi feita com a palavra chave siRNA. A adição de outras palavras chave relacionadas ao assunto (dsRNA, RNA dependent RNA polymerase, etc) eleva o número total de publicações para mais de 50 mil.

Em algumas postagens deste portal e em outros documentos técnicos explicamos como os pequenos RNA são gerados e como interferem na expressão de um gene (http://genpeace.blogspot.com.br/2011/09/entre-seriedade-e-o-disparate.html; http://www.ufpe.br/biolmol/iRNA.htm) e de que forma a avaliação de risco de produtos baseados nesta tecnologia é feita nestes casos (http://cienciahoje.uol.com.br/blogues/bussola/2013/04/dsRNA%20-Flavio%20Finardi.pdf; http://genpeace.blogspot.com.br/2013/04/rota-ao-dano-pelo-rna-de-interferencia.html).
Entretanto, tem-se lido frequentemente em portais que se posicionam contra a biotecnologia agrícola a afirmação de que pequenos RNA de interferência inesperados (“unexpected” ou “unanticipated”) podem ser criados em plantas transgênicas, dirigidos contra alvos não intencionais. Nestas postagens isso é passado como um risco sério, que não foi avaliado pelas agências de governo do Mundo responsáveis pela segurança dos OGM. Não nos parece, contudo, que a probabilidade seja alta ou que acarrete algum problema ambiental ou de saúde, particularmente no caso do feijão Embrapa 5.1, e assim vamos contestar a hipótese; entretanto, nunca se pode saber exatamente do que os opositores intransigentes da biotecnologia estão falando, porque raramente são claros em suas explicações, sempre baseadas em hipóteses muito imaginativas. Acreditamos que estejam falando do “PCR degradativo” (Liparti etal., 2001), em que um siRNA pode atuar como primer para a síntese da segunda fita do RNA por uma RNA polimerase dependente de RNA, encontrada em plantas.
Antes de adentrar neste assunto, gostaríamos de relembrar a construção genética do feijão GM da Embrapa, detalhadamente descrita nas várias publicações do grupo de pesquisa responsável pelo seu desenvolvimento (Aragão et al. 2013 e referências incluídas nele). A ideia que dirigiu os estudos foi a inibição da produção da enzima Rep (replicase) pelo mecanismo de interferência de RNA. Para tal o feijoeiro foi transformado com uma construção contendo um segmento de DNA no qual duas cópias invertidas de 411 pb aparecem separadas por um trecho não repetido de 750 pb. A transcrição deste trecho, a partir de um promotor forte, produz grampos de RNA fita dupla no núcleo, que são transportados para o citoplasma via exportina e clivados em dsRNA pela enzima Dicer. Estes fragmentos irão direcionar o complexo enzimático Argonauta para o mRNA específico que codifica a replicase (Figura 2).


Figura 2: (A) Grampo de RNA produzido no núcleo das células do feijoeiro a partir da transcrição do cassete de expressão introduzido na variedade transgênica Embrapa 5.1. Uma vez produzido, o grampo é exportado por um transportador específico para o citoplasma, onde será clivado pelas enzimas Dicer. (B) A “cabeça” ou “loop” é separada do pescoço, que é subsequentemente clivado em pequenos pedaços de RNA de fita dupla, que depois são convertidos em pequenos RNA de fita simples. Os trechos de RNA mais longos são degradados e uma fita dos pequenos RNA é carregada em um complexo proteico contendo a enzima Argonauta, que cliva os mRNA que têm complementaridade (neste caso, os genes para AC1). Sem o produto destes mensageiros o vírus não pode se multiplicar e a planta se torna resistente ao vírus.

Entretanto, o processo de degradação do mRNA não está restrito a uma única quebra pela enzima Argonauta: graças à ação de uma RNA polimerase dependente de RNA e do pareamento de pequenos RNA fita simples derivados dos dsRNA gerados pela Dicer, o restante do mRNA acima do ponto de corte pode ser transformado em fita dupla, gerando consequentemente um novo alvo para a Dicer, que o corta em pequenos fragmentos. Estes pequenos fragmentos são o resultado final da degradação do mRNA, mas também podem ser carregados no Argonauta para um outro round de clivagens simples de mRNA.
O processo todo está representado na Figura 3 a seguir. Ela mostra o mecanismo real pelo qual um siRNA gera a degradação de toda a região a montante de seu alvo no mRNA específico. Inicialmente é preciso saber que o mRNA transcrito a partir do genoma viral é policistrônico, ou subgenômico, como algumas vezes é chamado, contendo os transcritos dos genes AC1, AC2 e AC3, que codificam para as proteínas Rep, TrAP e REn (http://viralzone.expasy.org/all_by_species/111.html) (Figura 3A). Já sabemos também que a construção inserida no genoma do feijão tem um par de trechos idênticos de 411 pares de base do gene AC1, dispostos em sentidos opostos e separados entre si por um trecho não repetido de pouco mais de 700 pb, tomado de um íntron de planta (Figura 3B). Por isso, o alvo primário do complexo Argonauta será a região que tem o transcrito do gene AC1, que fica mais à montante do mRNA. Os demais genes estão abaixo dele, no mRNA. Como já comentamos, o processo começa quando o dsRNA gerado no núcleo, através da transcrição da construção inserida no organismo, é transportado para o citoplasma e quebrado em pequenos RNA fita dupla pela enzima Dicer (Figura 3C). Uma fita simples de cada pequeno RNA, carregada no complexo enzimático Argonauta, serve de “sonda” para encontrar o mRNA específico para o qual a construção foi dirigida. Neste caso, os mRNAs policitrônicos serão cortados em algum ponto dentro da sequência equivalente a AC1, representada em verde bandeira na figura 1A.


Figura 3: Esquema representativo dos genes AC1, AC2 e AC3 de BGMV, seu transcrito, e os vários passos que levam à degradação completa do mRNA acima do alvo definido pela construção genética.

O segundo passo na degradação do mRNA (ao menos da região acima, isto é, 5´ do corte dado pelo Argonauta) vai depender do pareamento de uma pequena fita simples, gerada a partir dos dsRNA, com o mRNA policistrônico. Numa primeira etapa, esta fita simples só pode parear nas regiões de complementaridade com a construção (indicadas em verde bandeira na Figura 3D), isto é, a montante do mRNA. A partir deste primer uma RNA polimerase RNA dependente pode estender a fita simples até a extremidade 5´ do mRNA, formando um trecho fita dupla. Este, por sua vez, servirá de substrato para Dicer e gerará finalmente novos siRNA diferentes daqueles que são gerados pelo processamento direto do dsRNA transgênico. Obviamente isso não tem nada de “unintended” e fica restrito às sequencia do RNA alvo. E mais ainda: fica restrito à região a montante (5´) do alvo, portanto , dentro do gene AC1 e sua região 5´ não traduzida. Não há qualquer possibilidade de geração de siRNA com similaridade a outros genes se apenas este mRNA estiver disponível.
Para que os demais genes possam gerar siRNA é necessários que estejam acima (isto é, 5´) do gene AC1. Isso só poderia acontecer caso um longo transcrito fosse produzido, no sentido inverso,a partir do promotor do gene para CP (veja figura 4, a seguir). Não é isso que deve acontecer na transcrição deste DNA, pois os genes abaixo do CP estão em sentido invertido e não poderiam ser expressos, fazendo de tal transcrito um “peso metabólico” desnecessário e perigoso para a sobrevivência do vírus. Um transcrito tão longo nunca foi descrito na literatura especializada, nem para o BGMV nem para vírus semelhantes.


Figura 4: Genoma duplo do vírus do mosaico dourado do feijoeiro (BGMV) (Fonte: Swiss Institute of Bioinformatics). O DNA-A dá origem a dois transcritos: no sentido anti-horário o mRNA policistrônico tem o transcrito dos genes AC1, AC2 e AC3 (codificando para as proteínas Rep, TrAP, e REn) e no sentido antihorário o mRNA tem o gene para CP.
Em resumo, a construção inserida no feijão Embrapa 5.1 não parece permitir a geração de siRNA dirigidos a outro gene que não o AC1 e sua região 5´ no genoma do vírus. Todo o resto é especulação. Ainda assim, a equipe da Embrapa procurou e não encontrou evidências de outros siRNA, como mencionado nas publicações.
Podemos concluir que é fantasiosa a ideia de que siRNA inesperados sejam produzidos neste feijão  e, mais ainda, que tenham qualquer importância no aumento de um pretenso risco à saúde humana ou animal, uma vez que a rota ao dano para este caso é de uma probabilidade de ocorrência insignificante e que os possíveis danos são ainda imponderáveis (veja-se a postagem http://genpeace.blogspot.com.br/2013/04/rota-ao-dano-pelo-rna-de-interferencia.html mencionada anteriormente).

Referências
Aragão FJ, Nogueira EO, Tinoco ML, Faria JC. (2013) - Molecular characterization of the first commercial transgenic common bean immune to the Bean golden mosaic virus. J Biotechnol. doi: 10.1016/j.jbiotec.2013.04.009. [Epub ahead of print]
Lipardi C, Wei Q, Paterson BM (2001)- RNAi as random degradative PCR: siRNA primers convert mRNA into dsRNAs that are degraded to generate new siRNAs. Cell 107(3):297-307.

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