sábado, 14 de maio de 2016

O plenário do Conselho Nacional de Saúde desafia o regulatório do país e parece desconhecer a importância da agricultura brasileira e como ela é feita

O Plenário do Conselho Nacional de Saúde - CNS, em sua Ducentésima Septuagésima Oitava Reunião Ordinária, realizada no dia 16 de março de 2016, resolveu publicar as propostas, diretrizes e moções aprovadas pelas Delegadas e Delegados na 15ª Conferência Nacional de Saúde, “com vistas a garantir-lhes ampla publicidade até que seja consolidado o Relatório Final”. As propostas, diretrizes e moções estão disponíveis em http://agrobiobrasil.org.br/wp-content/uploads/2016/05/10-Resolu%C3%A7%C3%A3o-CNS-507-DOU-05.05.2016.pdf. Marcadas em amarelo estão algumas propostas que conflitam com o arcabouço legal do país e que demonstram um viés perigoso dos Conselheiros que redunda num deslize para fora das questões de saúde, por mais ampla que seja a acepção do conceito. As propostas tampouco refletem qualquer indicação da Política Nacional de Alimentação e Saúde (http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/livros/politica_alimentacao_nutricao.pdf). Senão, vejamos:

Proposta 1.2.54 - Garantir o acesso a informações sobre transgênicos e agrotóxicos, baseado em pesquisas e publicações, livre de interesses comerciais, com ampla divulgação e a rotulagem explícita dos alimentos compostos por transgênicos, com indicação em Braille; proibir a produção e o comércio de transgênico e agrotóxico em território nacional, com proibição imediata de substâncias já proibidas em outros países; associar o compromisso de fortalecer a agricultura familiar, indígena e quilombolas como forma de garantir a soberania alimentar e impedir a apropriação dos direitos à vida e à saúde aos interesses do capital estrangeiro. (88,4% de aprovação)

Como está escrita, a proposta pede a proibição de cultivo de plantas transgênicas e do comércio de grãos e outros produtos derivados destas plantas. Acontece que isso é regulado no Brasil pela CTNBio – que faz a avaliação de risco inicial – e pelo MAPA, que registra as variedades de planta. Mais adiante, os produtos industrializados também são regulamentados e fiscalizados. Os produtos derivados de transgênicos foram considerados tão seguros para o consumo humano e animal como os derivados da agricultura convencional; e não apenas pela CTNBio, mas por todas as agências governamentais de avaliação de risco de OGMs no Mundo: a EFSA europeia, a agência canadense, as três agências americanas (e, em especial, o FDA), a OGTR australiana, a agência argentina, etc., etc. O pedido de uma proibição ao plantio e comercialização de transgênicos, além de avançar sobre áreas legisladas por instâncias de outros ministérios, demonstra ignorância sobre a biossegurança destes produtos, sobre a variedade enorme de transgênicos (inclusive aqueles empregados na produção de vacinas e ensaios diagnósticos) e sobre as vantagens do uso destes produtos na agricultura moderna.

A proposta também proíbe a produção de comércio de agrotóxicos, sem discriminar quais deles, embora adiante explicite que a proibição seria imediata para aqueles proibidos em outros países. Da mesma forma que para qualquer outro produto feito e comercializado no país, há uma regulamentação para os agrotóxicos, que envolve vários órgãos de governo. O uso destes produtos é imperioso na agricultura, sobretudo no clima tropical e subtropical do Brasil: são os agrotóxicos que controlam pragas e doenças e eles são empregados por agricultores em todas as escalas de produção, usando ou não plantas transgênicas. Alguns agrotóxicos nem sequer são imaginados como tal pelo público (como o óleo mineral, muitíssimo usado), outros são muito empregados na agricultura orgânica (como os esporos de Bt), botar tudo no mesmo balaio é inteiramente insensato. O pedido de uma proibição global aos agrotóxicos, além de avançar sobre áreas legisladas por instâncias de outros ministérios, demonstra igualmente ignorância sobre a agricultura brasileira, sobre a variedade enorme de agrotóxicos e sobre a forma segura de utilização destes produtos.

Há claramente um viés contra as plantas transgênicas cujas sementes são produzidas na maioria por empresas estrangeiras. Esquecem-se os participantes do Conselho que a EMBRAPA já tem sementes transgênicas no mercado e que em breve o feijão transgênico, inteiramente nacional, vai estar disponível ao público. Com o aparecimento de novas tecnologias (edição de genomas, por exemplo), vai ficar cada vez mais fácil produzir uma planta transgênica e o mercado será inundado de novas variedades, desenvolvidas por todo tipo de empresa, inclusive as nacionais e as estatais. Tudo, naturalmente, na dependência de que se mostrem seguras para a saúde e o ambiente. As novas plantas vão atender todo tipo de demanda de mercado e, não sendo sempre commodities, seguramente serão compradas e plantadas pelos pequenos agricultores, para desespero do Conselho e de outros atores no cenário alimentar e agrícola brasileiro. Não preciso de bola de cristal para ver isso.

A ideia ingênua de que a agricultura familiar e/ou orgânica é independente de sementes melhoradas e vendidas com royalties e que é uma forma de agricultura que produz alimentos de melhor qualidade, demonstra mais uma vez o viés “nacionalista” do Conselho, ao gosto da ideologia esquerdista mais despreparada (veja a Proposta 1.3.3 abaixo). Qualquer um que tenha familiaridade com a pequena agricultura sabe que os agricultores recebem sementes melhoradas, muitas vezes transgênicas. Também compram sementes de empresas, que auferem seus lucros. Quem planta grão como semente corre sérios riscos, que não cabe aqui explicar. Há ainda alguns poucos que produzem suas próprias sementes, em condições controladas, mas são uma minoria. Enfim, a pequena agricultura e a agricultura familiar não prescindem de sementes produzidas por empresas, nacionais ou estrangeiras, e podem plantar sementes transgênicas, nada impede a não ser as chamadas restritivas do MADA e de outras instituições, que levam o agricultor no cabresto, sem lhes dar direito de escolha tecnológica.

Quanto à rotulagem, enquanto valer o confuso ambiente regulatório para isso no Brasil, está certo o Conselho: tem que ser feita a identificação de que o produto é derivado de transgênico. O que tem que constar do rótulo são outros 500 mil réis: o público mal entende o tal T amarelo, muito menos o que é Agrobacterium, Bacillus thuringiensis e por aí vai. As sugestões de rotulagem, amparadas no regulatório embaralhado, são as mais bizarras.

Já a Proposta 1.3.3 abaixo é sensata na sua linha geral, pois pretende dar ao país uma opção alimentar baseada num sistema de produção diferente da agroindústria e da pequena agricultura convencional. Se fosse isso apenas, estaria coberto de razão o Conselho. Mas contrapor uma política nacional qualquer aos transgênicos é míope: o uso de transgênicos pode ser feito por qualquer tipo de agricultura e a agroindústria usa transgênicos para alguns grãos, mas não o faz para todo o resto.  Além disso, ao falar em desregulamentação de agrotóxicos, o Conselho mergulha na fantasia: nenhum país do Mundo vai fazer isso e o Brasil, dependente da exportação dos produtos agrícolas para o equilíbrio de sua balança comercial, nunca poderia violar as regras internacionalmente aceitas para controle do uso de agrotóxicos.

Proposta 1.3.3 - Implementar a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, contrapondo-se ao uso dos organismos geneticamente modificados e à desregulamentação da utilização de agrotóxicos no país, além de incentivar a produção e distribuição de alimentos orgânicos no país. (80,7% de aprovação)

Ainda mais adiante, no item Reforma Agrária, o Conselho adianta a seguinte proposta:

Proposta 8.3.1 - Proibir o uso de agrotóxicos e fomentar a agroecologia como promotora da saúde e alimentação saudável, por meio de: a) reavaliação dos registros e dos cadastros de agrotóxicos, b) banimento dos venenos já proibidos nos seus países de origem; c) vigilância ambiental e em saúde das/dos trabalhadoras/ trabalhadores; d) fim do financiamento público à aquisição destes produtos; e) aprovação de licenças pelo controle social, nas três esferas de governo; f) proibição de organismos geneticamente modificados; g) fomento de tecnologias para agroecologia e produção orgânica. (85,8% de aprovação)

Aqui, outra vez, o Conselho envereda numa área que não é sua, desprezando a importância dos agrotóxicos no manejo de pragas e na implementação de novas tecnologias de manejo de solos, como o plantio direto. O Conselho também antepõe a forma atual de produzir alimentos (de origem vegetal) à agroecologia, supondo que esta última produza alimentos mais saudáveis, mas não há evidência científica disso, muito pelo contrário: dezenas de casos de infecções produzidas por alimentos orgânicos aconteceram na última década, algumas vezes com muitos casos fatais. Em contrapartida, nada disso aconteceu com plantas transgênicas e mesmi os casos de intoxicações alimentares por agrotóxicos com causa comprovada em alimentos convencionais oferecidos no mercado são poucos. Aliás, quando acontecem, em geral envolvem a agricultura familiar (basta ler os relatórios do PARA).

Em conclusão, há aqui um embate ideológico inútil e mesmo danoso ao país. A segurança dos alimentos formulados com vegetais transgênicos está mais do que provada nos últimos 20 anos, confirmando as avaliações de risco feitas aqui e no resto do Mundo. As fantasias de Séralini e outros congêneres devem ser mantidas no zoológico das aberrações. Se o modelo de agronegócio brasileiro é danoso ao ambiente, isso é outra coisa, mas não tem nada a ver com a transgenia. Misturar estas duas coisas faz o gosto da esquerda intempestiva, mas quando se coloca a questão na balança da ciência, os argumentos espalhafatosos se convertem em fumaça. Uma pena que o Conselho Nacional de Saúde enverede por este tema, quando há outros vitais que demandam a atenção do sistema de saúde, e.g., a chikunglunya, a dengue a zika.


P.S.1 O Conselho só trata da dengue em uma proposta, mostrada abaixo:

Proposta 7.5.7 - Permitir a integração dos sistemas de coleta de dados por meio de Palmtops, entre outros equipamentos, para reduzir o tempo gasto pelos Agentes Comunitários de Saúde, através do E-SUS e Agentes de Endemias por meio de Sistema de Informação de Febre Amarela e Dengue quando do preenchimento de formulários unificando os prontuários dos usuários pelo cartão SUS.  (69,2% de aprovação)

Ora, as três flaviviroses espalham-se pelo país e a causa é a infestação maciça e generalizada das residências brasileiras pelo Aedes aegypti. Os mecanismos de identificação de focos (LIRAa e uso de ovitrampas) são uma piada, porque aplicados de qualquer forma, por agentes muitas vezes despreparados, sem fiscalização, etc. A subnotificação é gigantesca porque os médicos não estão motivados a notificar e os pacientes não procuram o serviço. O SUS finge que está tudo bem, os intelectuais pilotando suas escrivaninhas acham que tudo se resolve com a participação popular e o faz-de-conta vai arrebentando a saúde do brasileiro. Um Conselho mais atento à realidade do campo (não o agrícola, mas o epidemiológico) podia ajudar, mas enquanto os Conselheiros emprenham pelas orelhas e vêm os alimentos produzidos pela agricultura convencional e transgênica brasileira como perigosos ao brasileiro e ao país, o que devemos esperar?

P.S.2. Será que a preocupação com os alimentos “transgênicos” é válida? Abaixo está a listada de produtos de uma cesta básica padrão:

Produtos
Quanti-dades
Peso Histórico
Arroz – tipo 2 (pac. 5 Kg)
3
8,22%
Feijão Carioquinha (pac. 1 Kg)
4
2,66%
Açúcar Refinado (pac. 5 Kg)
2
1,53%
Café em Pó Papel Laminado (pac. 500 g)
3
6,29%
Farinha de Trigo (pac. 1 Kg)
3
1,85%
Farinha de Mandioca Torrada (pac. 500 g)
1
0,59%
Batata (Kg)
4
1,21%
Cebola (Kg)
1
0,48%
Alho (Kg)
0,2
1,96%
Ovos Brancos (Dz.)
3
2,87%
Margarina (pote c/ 250 g)
4
1,71%
Extrato de Tomate (emb. 350-370 g)
2
1,92%
Óleo de Soja (900 ml)
5
3,19%
Leite em Pó Integral (emb. 400-500 g)
3
5,88%
Macarrão c/ Ovos (pac. 500 g)
4
2,83%
Biscoito Maisena (pac. 200 g)
4
2,32%
Carne de Primeira (Kg)
3
10,14%
Carne de Segunda s/ Osso (Kg)
4
7,65%
Frango Resfriado Inteiro (Kg)
5
9,22%
Salsicha Avulsa (Kg)
0,5
2,21%
Lingüiça Fresca (Kg)
0,3
1,45%
Queijo Muzzarela Fatiado (Kg)
0,5
1,85%

Da lista acima só a margarina e o óleo de soja derivam de plantas transgênicas. Mesmo assim, desafio quem quer que seja a mostrar a mínima diferença entre uma margarina e um óleo obtidos de plantas transgênicas e de plantas convencionais. Também não vai existir resíduo algum de agrotóxico (herbicida) na margarina ou no óleo, evidentemente: são produtos muito processados e todo resíduo, se existir, vai embora no processamento.

O brasileiro acrescenta nesta lista da cesta básica doces, refrigerantes, frutas, legumes e verduras, peixe, etc.tudo que não deriva de transgênico. Pode ser que aqui e acolá a dona de casa compre algo que leva produtos de milho, soja ou algodão transgênicos, mas a composição final da dieta será esmagadoramente não transgênica. Mesmo que se acrescente cuscuz de milho, canjica, pamonha e outros produtos de milho amarelo, comuns aqui no Nordeste, ainda assim serão uma parcela pequena da dieta global. Em todos os casos, a presença de agrotóxicos será nula ou muito reduzida, porque milho, soja e algodão entram na dieta como produtos processados (com exceção notável do cuscuz e da canjica, que têm um processamento pequeno). Já nas hortaliças e frutas, tome agrotóxico: a maioria vem de pequenos agricultores e da agricultura familiar.


O viés contra os transgênicos chega a ser constrangedor quando a gente olha a realidade da mesa do brasileiro.

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