JC Quarta-Feira, 05 de outubro de 2011
Um dos temas importantes da oposição às plantas geneticamente modificadas (PGMs) é a questão da pureza genética. Genes de um organismo não poderiam atuar em outros, algo que não seria "natural". Desconhece-se ou ignora-se propositalmente a crescente literatura que mostra a transferência horizontal de genes entre bactérias, fungos, vermes, plantas e mesmo entre humanos e bactérias e até DNA de Trypanosoma passando para células do coração humano. Um gene de peixe transfere ao organismo receptor apenas sua função catalítica ou estrutural definida e não a característica "peixe".
A União Européia (UE) acabou de autorizar o uso de uma proteína de peixe de águas geladas, produzida em bactéria, para uso em sorvetes de baixo conteúdo calórico. A rápida aprovação causou estranheza aos opositores. A explicação foi a inexistência de produto análogo na UE, demonstrando como existe boa articulação entre os ativistas e os interesses de empresas européias. Não há problema de segurança, como o próprio órgão europeu encarregado da liberação tem declarado repetidamente. Idem para as grandes academias científicas americanas e européias. Será que ativistas de ONGs ou cientistas de universidade a elas ligados, sabem mais sobre a segurança das PGMs?
Só hipóteses conspiratórias sustentam os argumentos dos opositores. Essas hipóteses continuam fascinando pessoas: a ida à Lua foi fabricada em Hollywood, o ataque de 11 de setembro às torres gêmeas em Nova Iorque foi orquestrada pelo governo Bush, assim como outras teorias esdrúxulas que contam com sociedades ativas e se dedicam à extraterrestres, teoria da terra plana, fusão nuclear à frio, nazismo e teorias de supremacia racial.
Há um tipo de ambientalismo equivocado e romântico-regressivo que reforça o mito da agricultura "natural" (é fácil demonstrar que as plantas que nos alimentam foram geneticamente selecionadas e modificadas extensamente ao longo de milênios, incluindo o presente) e cria um tabu: é um crime contra a ordem natural do universo mover genes de um organismo para outro. Os tabus, como sabemos, são instrumentos de dominação sacerdotal comuns em sociedades primitivas. Creio que devemos ser tolerantes para com as crenças e tabus alheios. O que não podemos admitir é que esses tabus sejam impostos aos não crentes e venham causar danos e sofrimento aos demais.
No seio deste mito, o gene transferido não apenas leva uma característica "impura" ou "anormal" que "contamina" o puro genoma original (notem a semelhança com as noções de pureza racial do nazismo) como transfere alguma característica sobrenatural ("spooky") que degrada e torna "perigosa" a planta modificada. Uma metafísica que os "cientistas" opositores tentam materializar fazendo malabarismos com noções da biologia moderna que tiram do contexto ou corrompem, e que parecem convincentes ao leigo, incluindo grande número de jornalistas engajados no ambientalismo fundamentalista.
A quantidade de testes que a oposição exige para qualquer transgênico, por exemplo, o feijão resistente à vírus da Embrapa, revela essas raízes metafísicas: no campo onde cultiva-se este feijão devemos analisar as bactérias do solo, os fungos da micorriza, pequenos artrópodes e insetos, etc. Devemos alimentar múltiplas espécies de animais, por várias gerações, buscando efeitos adversos. Também devemos realizar esses testes com fêmeas em gestação, pois o nosso feijão "pode" ser teratogênico. A dúvida persistirá para os opositores quanto à alimentação humana, já que não somos exatamente idênticos a ratos, cães ou porcos. Talvez venham a sugerir um teste com humanos antes da liberação como fazemos na fase I da aprovação de medicamentos, usando voluntários sadios.
Vamos examinar objetivamente o que dispara essa imensa sequência de testes em nome do sagrado "princípio da precaução": este feijão não foi mutagenizado por cobalto radioativo ou etilmetanosulfonato, agentes que criariam dezenas ou centenas de mutações desconhecidas. Ele recebeu um pedaço de DNA preparado sinteticamente que dirige a expressão de um RNA que se dobra sobre si mesmo formando um "grampo de cabelo". Este RNA é, em parte, homólogo ao RNA viral que promove a tradução de uma proteína essencial para que o vírus do mosaico dourado infecte as células do feijoeiro. Um mecanismo elucidado nas últimas décadas, e que resultou em prêmio Nobel, denominado interferência de RNA, explica porque este RNA fita dupla funciona. Neste caso o feijão Embrapa não expressa uma nova proteína, apenas um RNA específico para desencadear o bloqueio da infecção viral. A modificação foi específica, cirúrgica e conhecida.
Também é uma solução biológica e orgânica, portanto "verde", para o problema da virose, em linha com os sonhos distantes de Rachel Carson, em sua cruzada contra os defensivos químicos. Ademais múltiplos testes foram realizados para certificar se a transformação genética, que sempre aumenta a taxa natural de mutações, não gerou alguma alteração que pudesse gerar preocupações. Não existindo proteínas expressas, portanto, argumentos como "alergenicidade", ou "toxicidade" caem por terra. Uma pessoa bem informada, e isenta, imediatamente constata a enorme futilidade e o imenso desperdício de tempo e dinheiro nos estudos recomendados. Logicamente, se o que foi feito no feijão realmente exigisse tais estudos, estaríamos condenando toda a agricultura mundial não-transgênica como completamente suspeita e deveríamos exigir imediatamente que esses testes sejam iniciados pelo menos nas muitas variedades de arroz, milho, trigo, cevada, café, etc. que consumimos de maneira particularmente abundante.
Parte da oposição é compreensível devido à desconfiança com as poderosas multinacionais que dominam o mercado atual. A Monsanto, como explica o pesquisador H. Miller, usou seus lobistas para convencer o governo a criar as conhecidas exigências excessivas e desnecessárias para tornar o processo de acreditação inacessível aos concorrentes. Universidades, instituições públicas e empreendedores menores ficam praticamente excluídos. As plantas transgênicas que podem beneficiar populações pobres, de pouco valor comercial, não serão prioridades para as gigantes da biotecnologia. O caminho é desregular fortemente como recomendou na Nature o professor Ingo Potrykus, que lidera o trabalho que gerou o arroz dourado, contendo provitamina A, que pode eliminar dezenas de milhares de casos de cegueira entre populações pobres que se alimentam principalmente de arroz.
Portanto podem crer: se não ficaram doentes com os alimentos convencionais até hoje consumidos, melhorados frequentemente por mutagênese pesada, e cultivados com pesticidas e fertilizantes, se, em média, estamos ganhando 5 a 6 horas de vida por dia devido à múltiplos fatores ligados à educação, ciência e tecnologia, consumam alegremente e com orgulho o feijão com "tesão" da Embrapa, o símbolo nazista-alimentar que transformaremos, espero, em motivo de satisfação nacional. Como benefício extra, saibam que este feijão receberá menos ou nenhum inseticida, o único recurso existente para reduzir a infestação com a mosca branca, que transmite o vírus. Bom apetite* !
Francisco G. Nóbrega e Maria Lucia Zaidan Dagli são professores da Universidade de São Paulo (USP).
* Daqui a três anos ou mais, devido a estudos exigidos pelo MAPA para liberação das sementes.
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