Marcel Kuntz, John Davison e
Agnès Ricroch publicaram um ensaio longo sobre as implicações do banimento do
milho MON810 pelo governo francês sobre o processo de avaliação de risco (http://www.nature.com/nbt/journal/v31/n6/full/nbt.2613.html?WT.ec_id=NBT-201306).
É uma leitura fundamental para todos os membros da CTNBio e para todos
aqueles interessados em avaliação de risco. Além do texto impresso, há
ainda links para suplementos online, que também precisam ser lidos. O conjunto
é impressionante. Aos que já militam na CTNBio há mais de dois anos será
possível lembrar que fizemos uma réplica, ponto a ponto, da maior parte dos
argumentos trazidos pelo Governo Frances e apresentados aqui por ocasião das
nossas discussões sobre os riscos dos milhos Bt. Mantidas as proporções, a
velha réplica rebate os mesmos pontos que esta, recém-publicada. Os autores,
então, afirmam que “O documento de medidas emergenciais da França não apenas é vazio
em novas evidências científicas, como também distorce e falseia citações e interpretações
de artigos científicos autênticos, incluindo os do painel de OGM da EFSA.
Outros artigos científicos (pelo menos 8 desde 2008) relevantes ao assunto e
trazendo uma visão distinta foram ignorados”. Foi também esta a
nossa afirmação ao fim da leitura da longa réplica ao texto contrário à
liberação comercial do milho Bt.
Independentemente da leitura que
se possa fazer do documento e seus suplementos, o parágrafo final merece
consideração especial:
“Pode-se perguntar porque, transcorrido mais de
um ano desta distorção da capacidade de análise científica, como mostra o
conteúdo do documento de medidas emergenciais, isto não provocou uma crítica
ampla. Claro que é improvável que a crítica venha do novo governo francês, que
segue a mesma política anti-OGM que lhe traz dividendos políticos. Nós propomos
que o silêncio da mídia e das instituições científicas é atribuível, pelo menos
em parte, à ideologia difusa, contemporânea, pós-moderna e relativista que
defende ser a ciência uma “construção social”, um “enquadramento” particular da
verdade e, ao fim, apenas uma opinião, não necessariamente melhor do que
qualquer outra. Num tal contexto, aqueles que insistirem numa verdade
científica fatalmente terão que encarar a acusação de “positivismo” ou “cientificismo”
(ou reducionismo, como ouvimos frequentemente na CTNBio.Nota do autor). Esta é
a grande contradição da política da União Europeia, que simultaneamente defende
uma abordagem “baseada em ciência” e, ao mesmo tempo, abraça um enfoque
pós-moderno que nega à ciência a capacidade de abordar verdades objetivas”.
Aqui surge um elemento
fundamental: a imposição de uma nova concepção de ciência, aquela em que o fato
científico (cuidado, fato é muito diferente de resultado ou observação) e a
própria ciência e seu método, não podem ser olhados apenas do ponto de vista
estrito dos cientistas, mas devem ser conceitos elaborados pelas diferentes
visões sociais, num contexto holístico. Será mesmo assim?
O maior pedagogo que já tivemos,
Paulo Freire, nordestino e professor da mesma universidade federal onde milito
(a UFPE), escreveu em seu excelente livro, Educação e Mudança, falando do
compromisso do profissional com a sociedade:
“Na medida em que o compromisso não pode ser um
ato passivo, mas práxis – ação e reflexão sobre a realidade – inserção nela,
ele implica indubitavelmente um conhecimento da realidade. Se o compromisso só
é válido quando está carregado de humanismo, este, por sua vez, só é válido
quando está fundado cientificamente”.
Paulo Freire avança na
argumentação dizendo que o profissional com compromisso deve ter uma visão que
se vai ampliando e deve buscar uma transformação do todo, e não das partes.
Isso é bem claro se considerarmos que todos os profissionais devem ter um
compromisso com seu povo. Mas a possibilidade da transformação do todo passa
por muitas instâncias e muitos atores e é esta articulação de atores que o
profissional deve buscar e nela engajar-se. É, contudo, irreal acreditar que
dentro de cada ambiente profissional se possa trabalhar pela mudança de um todo
social e tentar fazê-lo contradiz o papel técnico do profissional. Aqui aparece
uma pretensa oposição entre humanismo (na concepção freiriana, mais ampla) e
tecnologia. É novamente o próprio Paulo Freire que nos diz:
“O erro desta concepção (a de que o
humanismo retarda as soluções técnicas) é tão nefasto como o erro da sua contrária – a falsa
concepção do humanismo – que vê na tecnologia a razão dos males do homem
moderno. E o erro básico de ambas, que não podem oferecer a seus adeptos
nenhuma forma real de compromisso, está em que, perdendo elas a dimensão da
totalidade, não percebem o óbvio: que humanismo e tecnologia não se excluem.
Não percebem que o primeiro implica a segunda e vice versa”.
A leitura do parágrafo acima nos
mostra claramente que humanismo e ciência caminham lado a lado, mas que um não
determina o outro. Onde então o profissional que tem compromisso com seu povo
dá vazão ao seu humanismo, se ele atua na CTNBio? A questão, aqui, não é impor
ao fórum de discussão as questões levantadas pela visão humanista, uma vez que
o fórum é científico. A visão humanista entra na concepção da própria forma de
trabalhar, no compromisso do profissional com a verdade e com a missão que lhe
foi atribuída. E, naturalmente, o compromisso se estende à atuação nas demais
instâncias sociais: nas escolas, na política, na atividade nos vários fronts
sociais.
Baseado em seu humanismo, o
profissional em avaliação de riscos deve estar pronto a alertar o público sobre
as conclusões dos trabalhos de seu grupo e pode até se antepor publicamente às conclusões;
mas não deve fazê-lo com argumentos fora da ciência, falseados ou de alguma
forma desvirtuados, como fez o grupo anônimo que redigiu o documento francês. É
justamente seu compromisso como profissional com a sociedade que o leva à busca
da verdade, combatendo com as armas válidas em cada fórum. É também seu dever
servir como guia especialista ao povo, que não detém o conhecimento
indispensável à conclusão acertada. Mentir para o público é faltar com seu
compromisso, violando ao mesmo tampo o humanismo e a ciência embutidos na sua
atuação profissional. Assim, o que nos
diz Paulo Freire será concretizado: que humanismo e tecnologia não se excluem.
Paulo Andrade, Depto. Genética, UFPE
10/06/2013
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