A Comissão de Seguridade Social e
Família da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (13/03/2013), por
unanimidade, o relatório do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI) que trata dos
avanços e desafios das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional
no Brasil.
O relatório aborda
importantes pontos sobre a questão da segurança alimentar brasileira. Tem,
contudo, um claro viés anti-biotecnologia, abordando a questão das plantas
transgênicas de forma anticientífica e trazendo, desde as premissas da análise
até sua conclusão, conceitos e afirmações errôneas que circulam amplamente na
internet, alimentados pelo movimento de oposição ideológica à biotecnologia
agrícola.
Vale a pena uma análise
de alguns pontos do relatório.
Comecemos pelo excerto
abaixo, retirado da página 12.
O desafio de nortear as políticas públicas buscando avançar
no sentido de mudar o modelo vigente, como avançar reduzindo os problemas que
se apresentam e as ameaças que põe em perigo a segurança alimentar de nossa
população, como o aumento da adoção de transgênicos, que está associada ao
aumento do uso do agrotóxico e à monocultura foi ponto de reflexão.
É claro que se deve refletir de forma muito séria sobre as
políticas públicas e sua forma de apoiar ou modificar modelos produtivos
vigentes. Num país de economia aberta, os modelos produtivos são determinados
pelo mercado, mas o apoio de políticas públicas pode ser importante. Mudar as
políticas pode ou não mudar modelos produtivos, e isso deve ser refletido de
forma muito cuidadosa. Entretanto, bem antes de querer mudar o modelo de
produção da agricultura brasileira, que inclui desde pequenos agricultores
familiares até grandes produtores num sistema de agronegócio globalizado, é
preciso saber a razão para esta mudança, uma vez que o modelo atual foi
atingido pelo mercado, de forma quase espontânea. Porque o Estado deveria impor
sua vontade sobre o mercado? E, para além da razão, é preciso avaliar as bases
científicas e técnicas que apoiam a necessidade desta mudança.
No recorte do texto do relatório mostrado acima, a
Subcomissão apresenta de forma confusa o conceito de que a adoção da transgenia
por parte dos agricultores brasileiros é um problema, uma vez que está
associada ao aumento do uso de agrotóxicos e à monocultura. Nada pode ser mais
falso. Comecemos pela monocultura. Este modelo de agronegócio é tão antigo como
o Brasil. A monocultura canavieira tem 5 séculos e até hoje não usa variedades
transgênicas. Muito antes das variedades transgênicas chegarem ao Brasil, as
culturas da soja e do milho já empregava este modelo. Da mesma forma, o
algodão. Monocultura de laranja, eucalipto, feijão e um mundo de outras coisas
é a regra no agronegócio brasileiro e no mundo afora. A transgenia não ajuda
nem atrapalha este modelo, ela pode ajudar ou atrapalhar o agricultor, se a
escolha da variedade não for adequada. Por outro lado, não há problema algum em
associar transgênicos e cultivos de várias espécies numa mesma área. É o que
fazem os pequenos agricultores que já usam milho Bt e consorciam com feijão e
com outras leguminosas. A tecnologia GM de milho, soja ou algodão não é
incompatível com a agricultura convencional mista, isso é uma visão de quem, do
alto de seu gabinete na Esplanada, nunca viu uma plantação deste tipo.
O segundo desvio científico é atribuir à adoção dos
transgênicos o aumento do uso de agrotóxicos. O que se esqueceu de adicionar ao
cálculo foi o aumento da área agrícola brasileira, independentemente de se a
plantação é transgênica ou não. Na verdade, houve uma redução do uso de
agrotóxicos mais perigosos com a substituição por aqueles menos danosos ao
ambiente, e que são justamente os que permitem o cultivo das plantas
transgênicas. Houve, além disso, uma importantíssima redução do uso de
inseticidas, e isso a Subcomissão parece desconhecer totalmente.
Partindo de uma ideia preconcebida e errônea, a Subcomissão
caminha torta na análise das questões, despejando sobre a biotecnologia
agrícola todo o fabulário que circula na internet. Se não, vejamos o excerto
abaixo.
Efeitos deletérios sobre a saúde, decorrentes da ingestão de
alimentos geneticamente modificados têm sido constatados tardiamente. O emprego
de agrotóxicos tem-se multiplicado no Brasil, em decorrência do cultivo de
plantas transgênicas, acarretando maiores danos à saúde humana. O patenteamento
de sementes constitui ameaça à segurança alimentar e nutricional da população
brasileira.
São três temas muito diferentes, e assim vamos analisar cada
um separadamente.
Primeiro, o que a Subcomissão chama de efeitos deletérios
constatados tardiamente são os tumores mostrados nas figuras do trabalho de
Séralini e colaboradores, publicado em setembro do ano passado (e que está
citado no corpo do relatório). Ainda que o trabalho fosse verdadeiro (o que não
é, de forma alguma! Veja-se http://genpeace.blogspot.com.br/2012/10/seis-academias-cientificas-francesas_9343.html),
ele se refere a um certo tipo de milho tolerante a um certo herbicida. Estender
esta acusação a todo e qualquer transgênico é um disparate tremendo e só pode
ser fruto de uma ideologia que menospreza a ciência e seu método.
Segundo, e como vimos acima, o cultivo de plantas
transgênicas não favorece o uso de agrotóxicos mais do que o das plantas convencionais.
Ao contrário, ele pode reduzir muito o uso de inseticidas, no caso das plantas
que expressam proteínas inseticidas, e pode ainda levar a uma troca de
herbicidas mais tóxicos por outros de classe toxicológica inferior. Esta
afirmação da Subcomissão é mais uma das
fábulas que circulam na internet, sem qualquer apoio nem na estatística, nem na
ciência e na técnica agrícola.
Terceiro, a Subcomissão parece entender que somente as
sementes transgênicas são patenteadas. Isso é, evidentemente, falso. O
agronegócio no mundo todo trabalha com sementes melhoradas, que são vendidas a
cada safra para os agricultores por diferentes fornecedores. Isso é válido para
milho e soja, mas também para melão, mamão, coentro, laranja, arroz, feijão e
um sem fim de outros produtos. Estas sementes podem ser de linhagens melhoradas
ou híbridos. No caso dos híbridos, é indispensável a compra de novas sementes a
cada novo plantio, por causa da segregação. No caso das linhagens, pode-se
plantar na próxima safra, mas deve-se pagar os royalties. Isso porque a
qualidade destas sementes e seu desempenho garantido devem ser de alguma forma
pagas ao produtor da semente. O produtor pode, naturalmente, usar suas próprias
sementes, sem a tecnologia embutida nas sementes melhoradas, ou buscar sementes
com os fornecedores estatais. Se usar grãos de uma safra para o plantio da
próxima, pode transportar doenças e pragas: é o caso do arroz vermelho, por
exemplo, que contamina os grãos de arroz numa safra e se alastra pela plantação
nas seguintes se o grão for usado como semente, e é o caso também de várias
fruteiras, cujas doenças se propagam por sementes contaminadas. Se usar
sementes distribuídas pelo Governo, vai ter uma boa produtividade, porém não
atingirá a máxima produtividade requerida para certos mercados. O patenteamento
de sementes nunca colocou em risco a segurança alimentar de nenhum país e esta
ideia é mais uma fantasia propalada pela aragem virtual que roda os moinhos de
vento da Internet.
Mais adiante o relatório afirma:
Observa-se,
ainda, que a tecnologia das plantas transgênicas favorece a monocultura e
prejudica
a biodiversidade, colocando-se portanto em sentido contrário ao desenvolvimento
social que se faz necessário no meio rural brasileiro.
A primeira afirmação
(favorecimento da monocultura) já foi discutida. A segunda (prejuízo à
biodiversidade) carece de qualquer evidência científica. É evidente que a
agricultura é danosa ao meio ambiente, mas a agricultura que emprega plantas
transgênicas não é mais danosa que a convencional, podendo até ter menos
impacto (como no caso das lavouras Bt, resistentes a insetos). Apesar da adoção
maciça dos cultivos transgênicos em mais de 170 milhões de hectares no Mundo,
NUNCA se viu qualquer impacto específico sobre a biodiversidade que pudesse ser
atribuído à transgenia. É muito fácil colocar num relatório afirmações sem
embasamento nas estatísticas e na boa ciência, sobretudo quando seus autores
não são especialistas em avaliação de risco nem em agricultura. Mas é um
tremendo desserviço para o Brasil, se este relatório tem o peso de um documento
parlamentar.
Em
sua análise do processo de liberação de um organismo geneticamente modificado e
da forma como a decisão é tomada, a Subcomissão argumenta que:
Trata-se, sim, de uma decisão política,
que está além da ciência, eis que envolve o imponderável da economia e da
sociedade.
Não
há dúvida que qualquer decisão que impacte diretamente a sociedade termina por
ser uma decisão política, ainda que a forma como esta decisão é tomada não demonstre
por vezes de forma evidente seu viés político. É exatamente o caso da política
dos transgênicos. Se não vejamos:
A
CTNBio faz EXCLUSIVAMENTE A AVALIAÇÃO DE RISCO. Isso significa dizer que ela
avalia aspectos biológicos relativos ao transgênico, e nada mais. Uma vez dado
o parecer (que em geral classifica os riscos identificados na avaliação), cabe
ao CNBS pronunciar-se sobre outros aspectos (social, econômico, cultural, etc).
E cabe aos Ministérios avaliar se o produto está dentro das especificações
técnicas necessárias ao mercado. Nenhuma destas outras instâncias avalia riscos,
mas podem bloquear um produto por razões sócio-econômicas ou culturais ou por
questões de inadequação do produto às normas do mercado. A subcomissão reclama que as questões
sócio-econômicas não têm sido levadas em consideração pelo CNBS. Será por acaso
que ele não se reúne para avaliar cada liberação da CTNBio? Claro que não! Esta
é uma decisão de Governo, e parte do princípio de que, numa economia aberta de
um país democrático, é o mercado que irá avaliar o produto. Sua adoção ou rejeição
dependerão das forças do mercado, onde entram também as oposições ideológicas,
as opiniões e direitos de minorias, as questões culturais e religiosas, etc. Se
estas não tiverem força para contrarrestar a adoção de um produto, ele chegará
ao mercado. Porque o Governo deveria interferir nisso sem sequer dar uma chance
ao mercado de avaliar o produto (uma vez que foi considerado seguro pela CTNBio
e dentro das normas pelo MAPA ou pela ANVISA)?
A
interferência do Governo no mercado deve ser sempre de estímulo a novas formas
de produção que deem aos brasileiros produtos melhores e mais baratos e que
contribuam para a balança comercial, favorecendo assim um superávit essencial
para sustentar os programas sociais do próprio Governo. Qualquer interferência
que cerceie a inovação e o avanço tecnológico fatalmente condenará o país ao
atraso e, como consequência, à pobreza.
Por
fim, a Subcomissão sugere uma série de modificações na forma como os
transgênicos devem ser analisados e liberados, e vale a pena aqui também uma
análise da proposta. Está no relatório:
Esta
Subcomissão considera necessário efetuarem-se alterações na Lei nº 11.105, de
2005, de modo a estabelecer:
·
que as reuniões da CTNBio sejam públicas, medida fundamental para assegurar
a transparência que a sociedade espera daquele instituição;
·
que a solicitação de uso comercial de OGM seja previamente
apreciada pelos órgãos públicos federais nas áreas de saúde, meio ambiente e agricultura/pecuária
ou pesca/aquicultura, no prazo máximo de 180 dias;
·
que, concluída a análise prévia, caberá à CTNBio proceder à análise
técnica, quanto aos aspectos de sua competência e, sendo favoráveis todos os
pareceres, a CTNBio deliberará sobre a autorização de uso comercial do OGM
(salvo se o CNBS avocar a si a decisão); sendo contrários todos os pareceres,
estará indeferida a solicitação; havendo pareceres divergentes,
·
caberá ao CNBS deliberar conclusivamente sobre a autorização de
uso comercial do OGM.
·
que órgãos ou entidades da administração pública direta ou
indireta da União, dos Estados ou do Distrito Federal; partidos políticos com representação
no Congresso Nacional; entidades de classe e outras entidades legalmente
constituídas poderão apresentar recurso ao CNBS contra a decisão da CTNBio
sobre a liberação comercial de OGM e derivados.
A
primeira alteração (reuniões púbicas) é desnecessária, uma vez que as reuniões
da CTNBio já são abertas ao público! É verdade que os membros da Subcomissão
nunca lá botaram os pés, mas deveriam saber que as portas estão abertas.
As
segunda e terceira alterações provam que a Subcomissão desconhece a sistemática
de avaliação de um produto transgênico, seja aqui ou em qualquer outro país do
Mundo. A avaliação de risco sempre antecede as demais análises, porque se o
produto tiver riscos biológicos sérios, nem sequer será liberado pela CTNBio
para posteriores análises. Inverter isso é colocar a carroça na frente do burro.
Ademais, os outros órgãos governamentais citados têm assento na CTNBio. E por
fim, estes mesmos órgãos não estão afeitos à avaliação de risco de OGMs,
assunto extremamente específico, que deve ser tratado pelos especialistas na
CTNBio.
Já
a quarta alteração não altera nada: O CNBS já pode, se assim julgar necessário,
sustar a comercialização de qualquer OGM.
A
quinta alteração abre o leque das instituições que podem demandar ao CBNS uma
ação de avaliação em relação a um OGM considerado seguro pela CTNBio. Agora
apenas o IBAMA e a ANVISA podem solicitar ação do CNS. Porque estes órgãos?
Porque representam o meio ambiente e a saúde humana. De fato, é um pouco incoerente,
uma vez que a avaliação de risco de um OGM à saúde humana e ao ambiente não é
função destes dois órgãos, mas da CTNBio, onde têm assento. Mas se pode
compreender. Por outro lado, fatores sócio-econômicos, culturais e religiosos não
foram levados em consideração pela CTNBio (que não pode mesmo considerá-los,
pois extrapolam sua função como avaliadora de risco). Quem pode avaliar isso?
Como dito acima, o Governo tem a política de deixar ao mercado esta avaliação
e, até agora, isso tem dado certo: continua a crescer a adoção de transgênicos,
mas também se consolida um importante mercado orgânico no país e os programas
de apoio aos pequenos agricultores florescem. Nada indica que uma tecnologia
impede a adoção da outra. Também não parece ser crítico, do ponto de vista
cultural, que os grande produtores empreguem transgênicos: isso não afeta em
nada os produtores que empregam sementes crioulas e os programas para preservação
e distribuição destas sementes estão em crescimento. Se os novos agentes
elencados na quinta proposta de alteração puderem solicitar ao CNBS que avaliem
a decisão da CTNBio (que é meramente técnica e não inclui aspectos sociais,
econômicos ou culturais), eles deverão apresentar argumentos científicos
sólidos contra a decisão. Ora, o IBAMA e a ANVISA podem muito bem fazer isso.
Se os novos agentes quiserem bloquear a liberação comercial de um OGM, deverão
trazer uma argumentação nova, baseada em dados sócio-econômicos e culturais, e
que demonstrem que o mercado NÃO SERÁ CAPAZ de evitar um dano importante ao
país. Este é o tema sobre o qual o CNBS terá que se debruçar, não os aspectos
de biossegurança.
Imaginemos
agora quantos novos atores poderão apelar ao CNBS. Pela proposta da
Subcomissão, seriam “órgãos ou entidades da administração pública direta ou
indireta da União, dos Estados ou do Distrito Federal; partidos políticos com
representação no Congresso Nacional; entidades de classe e outras entidades
legalmente constituídas”, o que elevará os interlocutores à casa do milhar! É
razoável que todos possam obrigar a que 11 Ministros de Estado se reúnam a cada
vez que qualquer um deles se oponha a um OGM recém-liberado? É preciso mais
sensatez nisso.
Por
fim, concluindo sua argumentação a favor de um modelo agrícola familiar e
contra o agronegócio, a Subcomissão afirma:
A
necessidade de uma transição entre o modelo vigente, que privilegia a
concentração fundiária, a transgenia, o uso do agrotóxico, enfim o agronegócio,
para um modelo que privilegie a agricultura familiar, camponesa e
agrobiodiversa transitou em todas as audiências públicas e foi recorrente,
independente do tema tratado, o que demonstra sua magnitude.
Aqui
está patente a nociva interferência do Estado no mercado. O agronegócio e os
demais modelos de agricultura podem muito bem conviver (como convivem agora) e
não é necessária transição alguma. O que é necessário é um pacote de políticas
públicas que apoie as iniciativas de produção, independente de seu modelo,
desde que respeitem o ambiente na sua tarefa de gerar riquezas à sociedade.
Qualquer agricultura é danosa ao ambiente, mesmo a pequena agricultura, quando
considerada a atividade por hectare plantado. Todas empregam herbicidas,
inseticidas, movimentação de terra e outros elementos impactantes do ambiente.
É insensato e falso atribuir apenas ao agronegócio o impacto ambiental, embora,
dada suas dimensões, ele seguramente impacte mais que a pequena agricultura.
Porém, se dividirmos este impacto pela área, encontraremos que o modelo de
agricultura extensiva pode ser até menos impactante do que a pequena
agricultura familiar, uma vez que a produtividade tende a ser muito maior.
Em conclusão, em relação especificamente aos cultivos
transgênicos, o relatório é preconceituoso, falho e sugere atitudes
autoritárias, propondo uma interferência nociva do Estado no mercado agrícola,
retirando do agricultor seu direito de escolha, comprometendo a balança
comercial brasileira e colocando em risco os programas sociais brasileiros.