domingo, 28 de julho de 2013

Brincadeira tem hora, brincadeira tem hora! Crítica sobre biossegurança e uso comercial de plantas transgênicas parece retirada de uma peça de Ionescu.

Só pode ser brincadeira a forma como certos especialistas procuram embaralhar as informações em biossegurança e agricultura para confundir a cabeça do público. Vejam, por exemplo, a pérola publicada pela Revista Agriculturas ( v. 10,  n. 1, março de 2013) e intitulada “Transgênicos no Brasil: a manipulação não é só genética”. Os autores querem passar aos leitores a ideia de que o Governo (através da CTNBio, da Presidência e de outras instâncias) manipula os resultados da avaliação de risco, faz propaganda enganosa dos produtos transgênicos e de toda forma expõe a população a riscos em nome do capital. Pode ser que, em maior ou menor grau, algum tipo de lobby e conchavo tenha ocorrido e ainda ocorra dentro deste país, mas a matéria publicada não mostra nada disso em relação à CTNBio que, por seu cunho expressamente técnico e por sua constituição é essencialmente imune a estas artimanhas. O que ela faz é amontoar coisas sem relação umas com as outras, seja porque aconteceram em épocas distintas, seja porque seus mecanismos de ação são diferentes. Desta forma, os autores chegam a conclusões de fato surpreendentes, mais ainda quando se considera que dois são engenheiros agrônomos e membros da própria CTNBio, que tão duramente acusam.

Como a argumentação (em parte baseada em notícias da mídia leiga e no disse-me-disse usual da internet) e as conclusões estão erradas de cabo a rabo, é impossível fazer uma sinopse e o leitor  terá que ser paciente e ir montando seu mosaico à medida que avança no nosso. Nossa crítica será, portanto, realizada passo a passo. Para que o leitor possa nos acompanhar, sugerimos que vá ao portal da revista e baixe o artigo em pauta.

Os autores começam historiando a criação de um sistema de avaliação de riscos de OGM no Brasil, lá ainda na década de 90. O país não tinha experiência alguma nisso e o Mundo tinha pouca. E, naturalmente, os ajustes tiveram que ser feitos com o tempo. Corretamente se diz na matéria que havia a percepção de que o assunto (biossegurança) era da alçada de diferentes instâncias, mas a verdade é que, naquele tempo, tanto a forma de avaliar riscos como a inserção da avaliação de riscos no contexto da análise de riscos estavam muito pouco claras.  Quando a nova lei foi promulgada, em 2005, já havia um consenso internacional de que a avaliação de riscos era um processo essencialmente científico e que os demais componentes  da análise de risco (gestão e comunicação de riscos) deveriam ser mantidos separados, sendo atribuição de outros especialistas.
Assim, bem ao contrário do que sugerem os autores, não foi para atender à pressão das empresas que o legislador decidiu dar total independência à CTNBio para decidir sobre riscos e ligá-la ao Ministério da Ciência e Tecnologia, deixando ao Conselho Nacional de Biossegurança a tarefa de avaliar questões socioeconômicas e de outras naturezas, quando este julgasse cabível (ou quando acionado pelos órgãos de fiscalização e registro). Fê-lo, sim, mas para dar clareza à avaliação de risco e manter sua independência das demais fontes de elementos de análise.  Como a lei não delegou a qualquer outra instância a tarefa de avaliar riscos, a CTNBio deixou de ser consultiva e passou a ser deliberativa. Ao contrário do que dizem os autores, isto não foi uma exigência das empresas, mas uma consequência da evolução da forma como se faz análise de risco e da atualização da legislação. Depois da nova lei, como esperado,  as avaliações finalmente foram sendo concluídas e, sendo os riscos iguais àqueles observados nas plantas não transgênicas, as plantas transgênicas começaram a ser aprovadas para uso comercial.

O legislador também foi sábio em criar uma comissão com uma base muito variada de especialistas e de não os remunerar, evitando a formação de um corpo permanente e permitindo uma renovação constante dos quadros. Com estas duas ações (ligar a CTNBio ao MCT e criar um corpo plural e multidisciplinar) o legislador alcançou uma representatividade importante da CTNBio frente à sociedade. E evitou o conflito de interesses entre os diferentes ministérios quando deles dependia diretamente uma última palavra.  É sempre bom lembrar que muitos ministérios têm representantes  na CTNBio e que outros grupos sociais também estão representados, além das sociedades científicas.

Mas o legislador se equivocou (por pressão dos setores contrários à biotecnologia dentro do Governo ) e criou um voto majoritário por 2/3 para decisões comerciais. E porque se equivocou? Porque ciência se faz por maioria e avaliação de risco é baseada fortemente em ciência. Se 50% mais uma pessoa julgam que a coisa é segura, os demais obedecem. Não adotar um produto por que oito julgam que é arriscado e 15 julgam que é seguro não é uma medida de precaução, é simples e rematada tolice. Entendendo desta forma o Presidente Lula mudou este quorum de votação e a regra científica foi reestabelecida. Curiosamente,  deste dia em diante sempre houve maioria folgada na CTNBio para aprovação comercial, em geral maior que os tais 2/3. É viver para ver...

Ao adentrar na análise do que a CTNBio já aprovou e como o fez, os autores dizem “de chapa” que a CTNBio nunca cumpriu com o que ela mesmo pede. E, lá na nota do pé de página, vem a eterna cantilena de que a RN-05 (resolução que regra as liberações comercias) exigiria estudos toxicológicos com animais prenhes e de longa duração. Mas esta é uma interpretação muito pessoal dos autores. O que a RN pede é que eles sejam apresentados à CTNBio, se existirem. Não pede que sejam feitos, porque eles só devem ser aventados em caso de toxicidade aguda, coisa que NUNCA foi vista para NENHUMA proteína produzida por planta transgênica até hoje em NENHUMA parte do Mundo. Mas, claro, esta é uma “falha” sistematicamente apresentada por uma minoria dos membros da CTNBio, entre um rol relativamente restrito e repetitivo de outras hipotéticas “falhas” que são apontadas em todos os dossiês comerciais.

Finalmente os autores saem das acusações mais gerais - e quase de cunho político e adentram nos supostos erros de avaliação da biossegurança. E já começam chutando para a fora da barra porque não tratam de biossegurança, mas de uma suposta falha da tecnologia! Ora, a CTNBio não foi criada para acompanhar o sucesso (ou o insucesso) de uma tecnologia, mas para avaliar o impacto direto dos transgênicos na saúde e no meio ambiente. Assim, ela não se interessa e nem pode se interessar pelos herbicidas, arado, plantio direto, lucros, prejuízos, agroindústria, agroecologia, royalties e todas estas coisas que são importantes, mas não são sua função. Vamos, ainda assim, ao primeiro grande tema: as plantas transgênicas tolerantes a herbicidas (HT). Embora o assunto resvale meio para fora da praia deste blog, há erros tão crassos que merecem o devido reparo.

Os autores começam com uma frase espetacular: “O surgimento e a multiplicação de espécies espontâneas tolerantes ao glifosato até recentemente eram descartados pela maioria dos membros da CTNBio7, apesar de ser um fenômeno previsto pela ciência e alertado pela
minoria crítica na comissão.” Comecemos pela referência 7 citada: saiba assim o leitor que ela se refere ao parecer para a liberação comercial da primeira soja transgênica, isso lá nos idos de 1998. Então é assim que os autores entendem algo que se passou recentemente? Só rindo.  Em seguida, é preciso esclarecer ao leitor que todos os membros das subcomissões de saúde das plantas e ambiente e, provavelmente, a maioria dos demais, sabe perfeitamente que o aparecimento de ervas daninhas ou insetos resistentes aos praguicidas é algo absolutamente esperado e que será tanto mais retardado quanto melhor for o manejo integrado de pragas empregado. Este manejo não depende de uma única tecnologia, como  falsamente nos passam os autores deste texto. A tal minoria crítica não trouxe esta informação à CTNBio e sim os livros, que todos nós lemos. O que a minoria fez e faz é um enorme alarde sobre esta questão (aparecimento de resistência), que não é um problema de biossegurança e, portanto, não é da alçada da CTNBio. Mas para passar a ideia de que os membros da CTNBio são uns pascácios vale tudo: mistura e manda!

Em seguida os autores dizem que o aparecimento de algumas espécies tolerantes indica fracasso da tecnologia. Nada disso: o aparecimento de pragas resistentes indica o mal uso do manejo integrado de pragas ou o seu abandono por parte provavelmente daqueles mesmos agricultores que agora enfrentam o problema. Como é que dois engenheiros agrônomos assinam uma afirmação destas é que nos parece extravagante.

Logo adiante os autores dizem que as novas plantas GM vão ser feitas tolerantes a herbicidas de alta toxicidade. Mas não falam quais são eles. Ora, basta que se façam rotações adequadas de culturas e uso de herbicidas seletivos em plantas não transgênicas para que 99% destes problemas sejam resolvidos. Além disso, não há nenhuma planta no pipeline de aprovação nem em pesquisa que tolere herbicidas altamente tóxicos, isso é a mais rematada mentira. Para que isso, a não ser confundir o público? (Os autores devem estar se referindo ao herbicida 2-4-D, extensamente usado no país. Para ele há a seguinte informação, facilmente disponível:
Herbicidas clorofenoxiacéticos - Toxicologia Aplicada (ltc.nutes.ufrj.br/toxicologia/mXII.cloro.htm). O 2,4-D, o principal representante deste grupo de herbicidas, é um produto muito usado em todo o país e apresenta toxicidade moderada para mamíferos.

Na verdade, a preocupação maior seria com a dioxina, contaminante deste produto. Mas este não é um assunto da CTNBio, e sim do MAPA, da ANVISA e do IBAMA, que devem discutir entre si antes da aprovar o herbicida.

O próximo disparate é sobre plantas invasoras. Os autores afirmam que “também temos assistido ultimamente as PGMs se tornarem invasoras, comprometendo o cultivo de outras PGMs”. Fica-se imaginando um milharal invadindo uma plantação de soja GM ou vice versa, como numa batalha entre gregos e troianos. Mas quando vai se ler, os autores na verdade se referem às voluntárias que surgem quando se semeia uma nova safra na mesma área. Ora, sempre pode ocorrer que alguns grãos da safra anterior caiam no solo e germinem na safra seguinte. Procura-se evitar isso de várias formas e uma delas é usando um herbicida de largo espectro. Mas, evidentemente, se a planta da primeira safra era resistente a um certo herbicida, ele não pode ser usado para desvitalizar a área antes do novo plantio. (http://www.portaldoagronegocio.com.br/conteudo.php?id=86385).
 Os autores chegam a afirmar que a alternativa seria a eliminação manual do milho.
Que coisa, não é? Evidentemente, houve falha na desvitalização...O que há de excepcional nisso? Porque estas plantas foram chamadas de invasoras? Mais uma vez, só pode ser brincadeira com o leitor.

O texto continua falando (errado) sobre tecnologia e como nosso blog é sobre avaliação de risco e biossegurança, achamos que basta sobre plantas tolerantes a herbicidas. Os próprios autores reconhecem que a CTNBio não quer se debruçar sobre este problema tecnológico. É verdade: nem quer, nem deve, nem pode.

Quando os autores analisam a tecnologia Bt, cometem exatamente os mesmos erros que foram discutidos com a tecnologia HT. Falam do aparecimento de insetos resistentes como se fosse falha da tecnologia, quando na verdade é falha do manejo integrado de pragas ou acabou aparecendo porque um dia aparecerá mesmo! E, o pior, não reconhecem que, no caso dos insetos, houve a recente introdução no país de uma nova praga, a Helicoverpa armigera, para a qual nossas plantas GM não são resistentes. Isso confundiu o cenário, recentemente, e é um tremendo desserviço à população confundir mais ainda as coisas não falando desta nova praga e botando a culpa de tudo numa tecnologia que tem que andar casada com tudo mais na prática agrícola.


Para concluir, concordamos com os autores que é tempo de se levar à sociedade a questão dos transgênicos, mas de forma bem diversa da mostrada por eles nesta matéria desrespeitosa à ciência agrária, aos avaliadores de risco e ao bom senso geral (e, porque não, à inteligência do leitor atento e bem informado). Até agora apenas os que vêm problemas com os transgênicos se manifestam e são sistematicamente repetidos pela mídia online, que parece apreciar uma nota sensacionalista. Assim, os autores exploram bem este viés e nos contam uma história de governos vendidos ao capital, de pesquisadores e professores inebriados com a tecnologia e com a ciência e de mártires que digladiam sozinhos contra a massa de marias-vão-com-as-outras, que são todos os que não vêm problemas nos transgênicos e que se negam a encontrar pelo em ovo.  E, propositalmente, enfiam a CTNBio numa confusão que não é dela (e sim do MAPA, da ANVISA e do IBAMA), enquanto escondem a vasta e crescente adoção da tecnologia pelos nossos agricultores. 

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