Que DNA circula no sangue não é novidade. Fragmentos
de diferentes tamanhos podem ser encontrados, alguns grandes suficientes para
terem genes inteiros (na hipótese que sejam genes com introns pequenos) (Jahr
et al, 2001; Stroun et al., 1987). Entretanto,
a maior parte do DNA circulante é originado do próprio organismo: Os fragmentos
de DNA livres de células circulando no plasma são em geral uma amostra bastante
uniforme do genoma completo.
O entendimento atual é que as células que sofrem
apoptose – e que estão presentes em qualquer indivíduo, sadio ou doente, são a
fonte principal do DNA livre de células (cfDNA, em inglês). Além disso, no caso
de diferentes doenças (inflamação, doenças autoimunes, câncer ou trauma) as
células necróticas podem aumentar o nível do DNA circulante (Jahr et al., 2001).
No caso de
mulheres grávidas, DNA fetal também circula e pode ser detectado para fins
diagnósticos (Buysse et al., 2013). O DNA
livre de células circulante é agora também encarado como um promissor marcador
molecular em estudos sobre a fisiologia do exercício (Breitbach et al., 2012).
Também já se
sabia desde muito tempo atrás que certas patologias aumentam a quantidade de
DNA circulante (Leon et al., 1977). Este aumento não é causado pelo DNA,
evidentemente; é exatamente ao contrário: certas patologias aumentam a
permeabilidade de vasos ou alteram outras condições de tráfego de moléculas
através de membranas e levam a um aumento não apenas de cfDNA, mas de muitas
outras macromoléculas.
A origem dos
DNAs exógenos (isto é, que não proveem do organismo) é que não tinha sido
suficientemente esclarecida, embora possa ter origem em patógenos (Vernon et
al, 2002). Na verdade, ele pode vir de diferentes fontes, não necessariamente
dos alimentos ingeridos.
Dados sobre DNA
circulante
A concentração de DNA livre de células no plasma de
indivíduos saudáveis varia entre 0 e 100 ng/ml, com uma média de 13 +/- 3
ng/ml. Este nível pode aumentar uma ordem de grandeza em vários tipo de câncer
para uma média de 180 +/- 38 ng/ml (Leon et al., 1977). O aumento da
concentração de DNA em pacientes com certos tumores pode ser devido à redução
da atividade das DNAses celulares (Cherepanova et al., 2008), que não é a
causada pelo aumento da concentração de DNA, mas a causa deste!
A novidade que
nos traz este interessante e criativo artigo, de julho de 2013 (Spisák et al., PLOS
ONE 8(7), acessado através do link
é a descoberta
de DNA circulante (livre de células) no plasma que parece ter origem em plantas
e outras espécies ingeridas na alimentação
normal. Como veremos, contudo, a conclusão pode ser um tanto apressada, embora possa
ser em parte verdadeira.
A metodologia
adotada no artigo foi bastante criativa, mas traz consigo algumas limitações e consequências.
A primeira é que não é possível estimar a porcentagem ou fração que os DNAs de
origem não humana representam no total de DNA livre circulante no plasma. Não
há dúvida que há DNA de várias origens no plasma, mas é provável que
representem uma fração muito pequeno do total do DNA circulante.
A segunda
limitação é sobre a inferência do tamanho dos genes circulantes. O
sequenciamento per se não permite
nenhuma inferência. Os autores se basearam numa separação de fragmentos por
tamanho, através de eletroforese, e daí inferem que muitos fragmentos teriam
tamanho grande. Isso, contudo, não pode ser derivado dos resultados porque na
eletroforese de DNA fragmentos pequenos sempre são transportados entre os
grandes, sendo esta separação útil para muitos fins, mas inadequada para a
conclusão a que os autores chegam. Assim, não é possível concluir que
fragmentos suficientemente grandes para conter um gene inteiro passem para o
plasma, uma vez que fatalmente pequenos fragmentos contaminantes da amostra
também estarão presentes no sequenciamento.
Quando os autores
afirma que muitas sequências representam DNA de cloroplasto, eles também
admitem que em ao menos alguns casos elas poderiam advir de DNA bacteriano
circulante. Outros autores já haviam demonstrado que DNA bacteriano circula
normalmente no plasma humano. Fica, portanto, impossível assegurar que fração
das sequências é de origem vegetal.
Há também
algum conflito interno de resultados quando diferentes amostras são analisadas.
Assim, em indivíduos saudáveis os fragmentos encontrados pareciam advir de
cloroplasto de Solanum tuberosum (batata)
e/ou Solanum lycopersicum (tomate),
enquanto nos pacientes com doença de Kawasaki as sequências pareciam advir de Brassica rapa (canola) e laranja. Ora,
considerando que não há um viés significativo da dieta dos pacientes com a
doença de Kawasaki em direção ao consumo de laranja ou canola, os resultados
sugerem que há, na verdade, uma identificação parcialmente errônea das
sequências, que poderiam ter origem bacteriana ou, ainda mais grave, que o
processo de purificação do DNA, separação por faixa de tamanho de fragmentos e
sequenciamento foi bastante diferente nos dois casos, não permitindo qualquer
comparação entre os conjuntos de sequências encontradas. Os autores também
investigaram dados de sequências de DNA obtidas de plasma e depositados em
bancos de dados públicos e chegaram à conclusão de que, num deles, era a soja
que contribuía maciçamente para as sequências.
Estas variações evidentemente não refletem uma predisposição alimentar,
mas um viés metodológico que não pode ser facilmente identificado na descrição da metodologia do artigo. Por isso, qualquer tentativa de provar que as
sequências proveem da dieta através de um tratamento estatístico é,
necessariamente, muito especulativa para ser aceita como uma demonstração
definitiva.
Uma prova da afirmação anterior está na Tabela 1 do
trabalho, que mostra os organismos cujas sequências de cloroplastos foram
mais representadas nas amostras de soro de indivíduos normais. Vários, de fato,
podem fazer parte da dieta normal, mas outros aparecem como surpresas, como Oltmannsiellopsis viridis, Scenedesmus obliquus, Zygnema
circumcarinatum, Pseudendoclonium
akinetum, Ostreococcus tauri e Mesostigma viride, todas algas verdes que
não fazem parte da dieta humana, exceto como contaminante. Há muitas outras surpresas equivalentes,
representadas por outras algas e por organismos nunca consumidos numa dieta
humana normal, como o criptomonadíneo Guillardia
theta ou a árvore empregada para produção de madeira, Populus trichocarpa. A tabela mostra, enfim, que não se pode
inferir com segurança o que pode provir da dieta e o que é, tão somente,
sequência de DNA bacteriano circulante, que foi erroneamente identificado como
de outro organismo (eucarioto).
Uma vez
constatadas estas inconsistências (as quais os autores sequer mencionam), somos forçados a perguntar porque os autores
empregaram bancos de sequências de cloroplastos, em lugar se sequências
genômicas das plantas. Ora, um bom número de genomas das plantas comestíveis
está disponível e não seria impossível blastar as sequências obtidas contra estes
genomas, embora o esforço computacional seja, evidentemente, muito maior. O uso
das sequências de genomas de cloroplastos pode ter sido uma opção válida para
reduzir ou mesmo viabilizar o trabalho de blastar as sequências, mas
seguramente levou às muitas inconsistências e prováveis erros de identificação
observados aqui.
Em conclusão,
é provável que haja algum DNA circulante de origem vegetal em indivíduos
normais, assim como de muitas outras origens. Mas a inferência sobre o tamanho
destes fragmentos é muito especulativa. Além disso, devido ao uso dos genomas
de cloroplastos como referência para identificação das sequências, os
resultados são muito surpreendentes e de forma alguma permitem concluir que o
que se mediu e identificou tenha, de fato, origem nas plantas comestíveis
listadas na Tabela 1.
Do ponto de
vista de avaliação de risco este trabalho aponta para a probabilidade de que
algum DNA recombinante circule no plasma humano, proveniente da ingestão do
alimento formulado com plantas transgênicas. Muito bem, e daí?
Um DNA de forma alguma pode entrar numa célula e servir de mensageiro para a transcrição e posterior tradução da proteína recombinante: não há mecanismos para transportar DNAs dupla fita para o interior de células eucariotas, nem para o citoplasma e muito menos para o núcleo. Ainda que, numa hipótese extremamente fantasiosa, o DNA pudesse chegar ao núcleo, não há mecanismo possível para sua transcrição em mRNA, poliadenilação, capping e exportação de volta ao núcleo, uma vez que o genes das plantas têm sinais totalmente diversos dos humanos para estes processos. A hipótese de que estes DNAs poderiam se inserir nos genomas é ainda mais fantasiosa, devido à ausência de mecanismos que permitam o transporte do DNA ao núcleo. Além disso, como prova de evidência, há milhares de genomas humanos disponíveis e nem uma única sequência de planta neles que pudesse ter sido adicionada por este mecanismo hipotético.
Assim, o trabalho nos traz uma informação cientificamente interessante, mas inteiramente irrelevante do ponto de vista de risco.
Um DNA de forma alguma pode entrar numa célula e servir de mensageiro para a transcrição e posterior tradução da proteína recombinante: não há mecanismos para transportar DNAs dupla fita para o interior de células eucariotas, nem para o citoplasma e muito menos para o núcleo. Ainda que, numa hipótese extremamente fantasiosa, o DNA pudesse chegar ao núcleo, não há mecanismo possível para sua transcrição em mRNA, poliadenilação, capping e exportação de volta ao núcleo, uma vez que o genes das plantas têm sinais totalmente diversos dos humanos para estes processos. A hipótese de que estes DNAs poderiam se inserir nos genomas é ainda mais fantasiosa, devido à ausência de mecanismos que permitam o transporte do DNA ao núcleo. Além disso, como prova de evidência, há milhares de genomas humanos disponíveis e nem uma única sequência de planta neles que pudesse ter sido adicionada por este mecanismo hipotético.
Assim, o trabalho nos traz uma informação cientificamente interessante, mas inteiramente irrelevante do ponto de vista de risco.
Epílogo: May or Can?
Enquanto
redigíamos esta análise a turma do GMWatch, sempre atenta a qualquer novo
artigo que possa lançar dúvidas quanto ao conhecimento ou atitude dos
avaliadores de risco de transgênicos, já se adiantou e postou comentários (http://www.gmwatch.org/index.php/news/archive/2013/15007-complete-genes-can-pass-from-food-to-human-blood-study)
desvirtuando o que disseram Spisák e seus co-autores. O artigo claramente diz
que genes inteiros podem (em inglês, may) chegar ao sangue vindo das tripas. Significa
dizer que potencialmente eles podem fazer isso, mas não há certeza de que o
façam. O nosso querido GMWatch trocou o may
por can. Em português a tradução não
muda, mas em inglês a troca implica que os genes podem, sem sobra de dúvida, passar
das tripas ao sangue! Além disso, O GMWatch juntou aos comentários sobre o artigo um conjunto de comentários sobre artigos paralelos, dando a falsa impressão que Spisák e seus colegas acreditam em novos riscos dos OGM por causa desta "nova" informação. É distorcendo a ciência e os textos publicados que esta
turma vai enganando os leitores.
Referências
para leitura:
Breitbach S, Tug S, Simon P. (2012)
Circulating cell-free DNA: an up-coming molecular marker in exercise
physiology. Sports Med. 42(7):565-86.
Buysse K, Beulen L, Gomes I,
Gilissen C, Keesmaat C, Janssen IM, Derks-Willemen JJ, de Ligt J, Feenstra I,
Bekker MN, van Vugt JM, van Kessel AG, Vissers LE, Faas BH (2013). Reliable
noninvasive prenatal testing by massively parallel sequencing of circulating
cell-free DNA from maternal plasma processed up to 24h after venipuncture. Clin
Biochem. Aug 8. pii: S0009-9120(13)00353-6. doi:
10.1016/j.clinbiochem.2013.07.020. [Epub ahead of print]
Cherepanova AV, Tamkovich SN,
Bryzgunova OE, Vlassov VV, Laktionov PP (2008) Deoxyribonuclease activity and
circulating DNA concentration in blood plasma of patients with prostate tumors.
Ann N Y Acad Sci 1137: 218–221.
Jahr S, Hentze H, Englisch S, Hardt D,
Fackelmayer FO, et al. (2001) DNA fragments in the blood plasma of cancer
patients: quantitations and evidence for their origin from apoptotic and
necrotic cells. Cancer Res 61: 1659–1665.
Leon SA, Shapiro B, Sklaroff DM,
Yaros MJ (1977) Free DNA in the serum of cancer patients and the effect of
therapy. Cancer Res 37: 646–650.
Stroun M, Anker P, Lyautey J,
Lederrey C, Maurice PA (1987) Isolation and characterization of DNA from the
plasma of cancer patients. Eur J Cancer Clin Oncol 23: 707–712.
Vernon SD, Shukla SK, Conradt J,
Unger ER, Reeves WC (2002). Analysis of 16S rRNA gene sequences and circulating
cell-free DNA from plasma of chronic fatigue syndrome and non-fatigued
subjects. BMC Microbiol.
The Gm Crops are harmful to human beings who consume it, it not only spoils your DNA but also effects your kids.....So better watch out....Be safe
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