terça-feira, 11 de novembro de 2014

Cuscuz de milho transgênico: a preocupação acreana pode ser estendida ao Brasil, e uma análise serena da questão também.

Prezado Bab.

Queria comentar nesta postagem algumas coisas sobre nosso direito (seu, meu, de todos os brasileiros, de todos os viventes nesta Terra) de consumir ou usar o que julgamos mais saudável, gostoso, chique ou seja porque razão mais adequado para nós. Vou seguir seu comentário contido na sua própria postagem no blog do Altino Machado, disponível em http://www.altinomachado.com.br/2014/11/nosso-pao-de-milho-transgenico-de-cada.html  e que suscitou vários comentários. 

Acho que o direito de escolha é um direito natural, mas a gente tem que se limitar ao que o mercado nos oferece. Eu gosto de chucrute (passei um tempo na Alemanha), mas no Nordeste eu raramente encontro. Também curto falar de um orelhão, detesto esta história de estar com um equipamento que esquenta colado na minha orelha, mas quase já não existem orelhões. Gosto de comer camurim e caranguejo, porém só grande: nem um nem outro estão disponíveis. Então, acabo consumindo o que o mercado me oferece. Não me importo em comer milho transgênico, afinal acompanhei o passo a passo da avaliação de risco de todos os milhos GM que estão no mercado e sei exatamente o que eles são. Mas se eu quisesse consumir cuscuz de milho convencional, teria que plantar meu milho. Será que ninguém mais planta o milho convencional ou há outra causa pela qual não há cuscuz que não tenha o tal T num triângulo amarelo? Quem está impondo o que a que? Vou tentar explicar, no meu parco entendimento do mercado de produtos alimentícios industriais.

Uns 15 a 40% de todo milho produzido ainda é convencional (dependendo da safra), mas é plantado em geral pelos pequenos agricultores e seu uso não costuma ser industrial, isto é, não vai parar nos grandes silos que misturam grãos de muitos produtores e os enviam para as linhas de produção de alimentos processados e semiprocessados. Esta é a principal razão pela qual a maioria dos pacotes de cuscuz vai ter o tal T. Por que não há indústrias fazendo cuscuz com os 15-40% de milho convencional, caso ele pudesse ser segregado do milho transgênico? Porque não há demanda (como no caso dos orelhões, a alternativa satisfaz): as pessoas em geral não se importam em consumir milho GM ou bem porque não se interessam ou porque confiam nos órgãos de avaliação de risco e de regulação do Brasil. Então, não é uma imposição, é uma opção industrial guiada pelo mercado produtor de milho e pela falta de interesse em produtos não GM pelo mercado consumidor. O produtor de cuscuz não está desrespeitando ninguém porque o milho transgênico que ele usa é aprovado para todos os usos do milho convencional.

Perdemos nosso direito de escolha? Sim. Afinal, quem se importa com milho transgênico (ou com a falta de orelhões, de peixe salgado, piracuí, farofa de tanajura ou de tatuí) é uma minoria de brasileiros. Seria bacana importar milho orgânico do Peru ou de outro produtor para atender a demanda dos que rejeitam o milho GM, mas isso é uma questão comercial e não se pode nem se deve obrigar o Governo do Estado do Acre a se meter nisso. Mais uma vez, a produção de milho para consumo humano costuma ser insuficiente nos países andinos e o Peru não é exceção. Orgânico, então, menos ainda: entre os principais produtos exportados orgânicos do Peru em 2013 (http://www.agronegocios.pe/economia/item/3129-en-2013-peru-exporto-us-230-millones-en-productos-organicos) não consta o milho. Mesmo que se consuma pouco milho no Acre, se todo ele for orgânico ou apenas convencional acho bem difícil que o Peru ou outro país andino possa suprir a demanda. E mais difícil ainda que os acreanos estejam dispostos a pagar mais pelo cuscuz de milho importado.

O cuscuz faz parte da tradição e da memória do povo, isso não muda se ele é GM ou não, uma vez que 99% dos brasileiros não se importam com o fato do milho ser transgênico, embora deem o devido crédito às comidas de milho.

Quanto ao aspecto do milho GM, que muita gente imagina ser diferente do convencional, a comparação deve ser feita com o milho não GM isogênico, ou seja geneticamente igualzinho, exceto pela transgenia. E mais: os dois devem ser cultivados em condições semelhantes. Aí se pode dizer se eles são diferentes ou não. Olhar uma espiga de milho de uma linhagem, cultivada num determinado sistema, e comparar com uma espiga de outra linhagem completamente diferente, cultivada de forma muito diversa, resulta numa comparação inválida. Na prática agronômica (feita pelos tais bio-técnicos, como você designou os engenheiros agrônomos, pesquisadores da EMBRAPA, das universidades e outras instituições de ensino e pesquisa do Brasil), não há diferença alguma. Na minha prática culinária, o cuscuz que como todo dia (mas todo dia mesmo!) não mudou de sabor desde antes de 2008, quando os primeiros milhos GM foram plantados: continua cheiroso, macio e gostoso como deve ser, puro, com manteiga, com leite, com ovo, com mamão, manga, peixe ou o que se quiser.

Vamos fechar com a leitura do texto sobre o Séralini. Você diz nos seus comentários “Ratos que se alimentaram de grãos transgênicos desenvolveram câncer de pele e tumores cerebrais. Os do outro grupo, permaneceram sadios e felizes. Foi a ciência que comprovou, não foi o beato Salu, Ok?”. Sei que a leitura de artigos científicos é muito aborrecida e por vezes difícil, coisa para os tais bio-técnicos. Mas citar artigos sem ler é sempre arriscado. A análise do seu texto acima mostra que você seguramente não leu o artigo e extraiu suas informações de uma leitura apressada de algum blog. Afinal, embora o número de animais esteja certo, quase tudo mais está errado. Os tumores (que não são de pele nem de cérebro) estavam presentes nos dois grupos de animais e, pior ainda,  tendiam a ser mais numerosos ou surgirem mais cedo entre os bichos alimentados como o milho GM do que entre bichos alimentados com milho convencional apenas se uma estatística prá lá de mambembe fosse empregada. A publicação foi duramente criticada pela maioria dos cientistas e aplaudida pelos “alternativos”. Depois de um ano a revista retirou o artigo de circulação. Uma revista obscura e com um forte viés anti-OGM republicou o estudo, sem nenhuma melhoria substancial. Os resultados do Séralini não se alinham com nada publicado antes nem depois e, pela metodologia bizarra, não podem ser chamados de ciência. Para uma análise bem detalhada deste caso, você pode ler o que publicamos na ocasião e ao longo do ano e meio em que o artigo saiu, foi criticado, morto, sepultado e ressuscitado (mas, por favor, nenhuma analogia com nosso bom Cristo):

Enfim, a percepção de risco dos transgênicos pode ser muito diferente entre diferentes pessoas, mas a avaliação de risco, que é baseada em ciência e feita pelos tais bio – técnicos, indica um resultado em geral muito diferente da percepção geral. Dez anos de consumo por bicho e gente pelo mundo afora mostram que os riscos, se existirem, são muito pequenos, em que pesem os resultados isolados do Séralini e de mais uma meia dúzia, que em geral são obtidos com o uso de uma metodologia muito deficiente, quando não francamente distorcida. Estas vozes isoladas não falam a linguagem da ciência e poderiam muito bem ser a do fictício beato Salu, do Antônio Conselheiro ou de qualquer outro iluminado que sacasse a conclusão de uma faísca de iluminação divina.

Cordialmente,

Paulo Andrade

Um comentário:

  1. Eu tenho essa preocupação de saber se realmente o milho GMO é prejudicial a saude pois eu não como pão, somente cuzcuz ou pão milho e as vezes a tapioca.

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